Autora: Hélène Rey [1]
Inovações tecnológicas estão em vias de sacudir o sistema monetário e financeiro internacional. Como isso vai acontecer, dependerá de quem definirá os padrões a serem adotados, o setor público ou o setor privado. Também serão importantes as regulamentações, a cooperação internacional e a resiliência das novas tecnologias aos riscos cibernéticos. Os efeitos que terão sobre os fluxos de capital são difíceis de avaliar, mas já se sabe que terão impactos significativos nas contas fiscais, na fragmentação geoeconômica, na volatilidade da taxa de câmbio e no grau de internacionalização das principais moedas.
Os criptoativos estáveis (stablecoins) aparecem agora como uma das inovações mais relevantes. Eis que estão sendo cada vez mais adotados já que os EUA criaram uma estrutura legal projetada para impulsionar a sua adoção, visando solidificar o papel do dólar como a principal moeda internacional. A tokenização também desempenha um papel nesse processo. Eis que consiste numa forma de registro de reivindicações de propriedade sobre ativos, que antes existiam em um livro-razão tradicional, mas que agora são emitidos apenas digitalmente, em uma plataforma programável. Desse modo, essas reivindicações podem ser transferidas com certa facilidade (Agur et ali, 2025).
Essas novas tecnologias podem liberar novas funcionalidades – por exemplo, a programabilidade –, o que amplia o conjunto de políticas possíveis. Podem, também, unificar profundamente a forma como o capital flui através das fronteiras e de classes de ativos, fazendo com que muitos atores privados e governamentais usem a mesma plataforma. Ora, o uso dessas tecnologias também pode ameaçar as receitas dos governos. Pode, também, levar o sistema monetário de volta ao mundo do século XIX em que emissores de dinheiro privado competiam por senhoriagem. Se isso ocorrer, haverá fragmentação e desestabilização do sistema financeiro internacional.
Implicações das stablecoins
Os criptoativos estáveis (stablecoins) emitidos pelo setor privado – os quais operam por meio da tecnologia de “blockchains” – estabelecem uma ponte entre o sistema financeiro convencional e o ecossistema dos criptoativos como um todo. Eles são emitidos sob a promessa de que manterão valor estável em relação à certas moedas fiduciárias; e o farão, principalmente, porque manterão ativos líquidos, como títulos do Tesouro dos EUA. De qualquer modo, eles compartilham certas características com os fundos do mercado monetário e com o “sistema bancário estreito” – também conhecido como sistema bancário de reserva de 100% – embora normalmente não ofereçam, até agora, um pagamento de juros.
Quase todos criptoativos estáveis estão atrelados ao dólar americano; contudo, a maioria das transações acontece fora dos Estados Unidos. Pois, eles são usados muitas vezes como veículos para investimentos especulativos. Ademais, eles funcionam cada vez mais como instrumentos de pagamento transfronteiriços. Podem ser úteis quando o sistema financeiro doméstico se mostra fraco ou caro. Ganham importância, também, quando as transações financeiras internacionais são muito regulamentadas, por causa de controles de capital ou porque há sanções impostas externamente.
Caso os criptoativos estáveis, particularmente aquelas atrelados ao dólar, tornem-se uma importante ferramenta de pagamento global, isso terá consequências substantivas. O seu lado negativo advém da dolarização e de seus efeitos colaterais, assim como dos riscos para a estabilidade financeira. Dentre eles, pode-se mencionar o potencial que têm de esvaziar o sistema bancário tradicional. Eis que fomentarão a competição e a instabilidade cambial. Ademais, eles podem ser usados na lavagem de dinheiro. Podem, também, erodir a base fiscal dos governos. Como figuram como moedas privadas, a sua adoção implica na privatização da senhoriagem.
Do lado positivo, os pagamentos transfronteiriços podem ser mais rápidos e baratos, o que é especialmente importante para as remessas de dinheiro. Os cidadãos de países com má governança terão acesso a meios de pagamento e reserva de valor mais estáveis e convenientes do que sua moeda nacional. Aqueles que recebem pagamentos dos EUA e estão sob o seu domínio podem ser afetados por suas sanções. Claramente, essas possibilidades merecem mais discussão.
Fluxos de capitais e intermediação
Os criptoativos estáveis atrelados ao dólar americano, a moeda internacional mais importante, herdarão algumas de suas características. Vinculadas à unidade de conta dominante, eles podem se beneficiar das externalidades de rede do ecossistema do dólar e de sua credibilidade. Têm, portanto, o potencial de ser um importante meio de troca em todo o mundo, facilitando as transações e remessas.
Ao substituir os sistemas que unificam os sistemas bancários internacionalmente – tal como o SWIFT – eles podem acelerar e reduzir os custos das transações internacionais, melhorando a eficiência. Mas parte dessa redução no custo pode advir da falta de conformidade com a regra que manda “conhecer o seu cliente”. Por isso mesmo, elas abrem o caminho para a lavagem de dinheiro já que as autoridades reguladoras não sabem o que está acontecendo. Os criptoativos estáveis são também, certamente, uma maneira atraente de contornar sanções e de fazer transações ilegais.
Eles são mais estáveis do que os criptoativos Bitcoin e Ether, os quais têm sido usados precisamente para esses fins (Graf von Luckner, Reinhart e Rogoff 2023; Graf von Luckner, Koepke e Sgherri 2024). Aqueles não lastreados também podem ajudar a canalizar dinheiro vinculado a atividades ilícitas ou a atividades que sejam alvos de sanções. Podem, por isso, corroer substancialmente a base tributária de muitos países. Os usuários de criptomoedas provavelmente encontrarão formas de operar fora dos sistemas financeiros convencionais. E isso poderá afetar algumas jurisdições.
Se o uso de criptoativos indexados ao dólar americano aumentar enormemente em todo o mundo, isso poderá esvaziar os setores bancários tradicionais devido à competição por depósitos. Se os próprios bancos emitirem esse criptoativos, isso poderá restringir a capacidade que têm de fornecer empréstimos. Pois, consubstanciam um desenvolvimento semelhante ao de um sistema bancário que funciona com 100 por cento de reservas.
Ao se supor que os títulos do tesouro dos EUA serão os principais ativos que lastrearão os criptoativos estáveis (stablecoins), verifica-se que isso aumentará a sua demanda.
Como têm efeitos sobre o risco sistêmico, como elevam os riscos de corridas, como enfraquecem os controles sobre alguns atores que passam a usar esses novos instrumentos, tudo isso merece um olhar atento. E o custo clássico da dolarização em todo o mundo deve ser lembrado: ela pode alterar os canais de transmissão da política monetária, dificultando a estabilização macroeconômica.
Privatização da senhoriagem
Para o resto do mundo, incluindo a Europa, a ampla adoção de criptoativos estáveis indexados ao dólar americano para fins de pagamentos criará problemas. Tudo se passará como se tivesse havido uma privatização da senhoriagem por atores globais. Ao facilitar os fluxos internacionais, facilita também a evasão fiscal, o que contribuirá para o desbalanceamentos das contas do setor público. Dado o lastro desses criptoativos, isso poderá reduzir a demanda por títulos dos outros governos, já que isso aumentará a demanda por títulos do Tesouro dos EUA.
A magnitude desse efeito dependerá dos padrões de substituição entre criptoativos lastreados em dólares e fundos do mercado monetário e depósitos em moedas locais e dólares. O Tether e o USDC já detêm coletivamente mais títulos do Tesouro dos EUA do que a Arábia Saudita. Assim, ao aumentar a demanda por títulos do Tesouro dos EUA, ou seja, por aquilo que permite atualmente a existência de passivos externos seguros, os criptoativos estáveis (stablecoins) indexados ao dólar americano poderiam reforçar o balanço patrimonial do atual “banqueiro mundial”, isto é, dos Estados Unidos, ajudando assim a estabilizar as suas finanças e os seus déficits externos. Tais criptoativos poderão constituir um pilar digital que irá fortalecer o privilégio exorbitante do dólar americano.
Outra consequência dos crescentes fluxos de tais criptoativos em dólares americanos – associada à privatização da senhoriagem global –, é o acúmulo significativo de riqueza fictícia. E isso decorre da força das externalidades da rede que envolvem empresas e indivíduos. Do ponto de vista da economia política, isso dará início a um maior lobby pela desregulamentação e opacidade dos fluxos internacionais de capital. Tal resultado desafiaria a dimensão de bem público do sistema monetário internacional.
Infelizmente, os esforços de coleta de dados sobre os fluxos de capital sob a forma de criptoativos, que estão sendo feitos por organizações internacionais e autoridades nacionais, ainda estão em sua infância. Há duas contribuições valiosas em pesquisas recentes do FMI que descrevem esses desafios (Reuter, 2025; Cardozo e outros 2024). Como o surgimento dos criptoativos pode ameaçar as principais políticas macroeconômicas e o financiamento e fornecimento de bens públicos nacionais e globais, medir seus fluxos, uso e regulamentação global, deve ser uma prioridade política.
Tokenização e integração
A tokenização pode integrar mensagens, reconciliação e transferência de ativos em um livro-razão unificado, onde as moedas digitais do banco central (CBDCs) também desempenham um papel importante. Os CBDCs de diferentes países podem estar vinculados às transações internacionais eficientes, de acordo com o Banco de Compensações Internacionais. Os fluxos globais de capital podem ser remodelados por essa tokenização. E isso pode ocorrer por meio da tecnologia do “blockchain” que permite que dinheiro, ativos e informações se movam de forma segura e automática sem sistemas bancários ou de compensação tradicionais.
O acesso a ativos estrangeiros tem sido historicamente restrito por barreiras como controles de capital, regulamentação e pagamentos transfronteiriços ineficientes. A interoperabilidade e novas plataformas de negociação para ativos globais, como ações, títulos e commodities, podem abrir o acesso para investidores individuais, onde quer que estejam. As plataformas de finanças descentralizadas (DeFi) podem ampliar esses benefícios com transações parceiro à parceiro (peer-to-peer), eliminando intermediários como bancos e corretoras. A tokenização pode, assim, expandir a integração financeira, trazendo vantagens e desafios bem conhecidos.
Moedas e estabilidade financeira
Tal sistema poderá elevar o nível da substituição entre moedas e, portanto, fazer crescer a concorrência, levando a grandes mudanças nos portfolios monetário. Retornos crescentes de escala ocorrerão nesta arena internacional mais ampla; também crescerão as forças que pressionam por uma única unidade de conta. O dólar incumbente tem uma vantagem. Mas o valor estratégico dos dados de pagamento e o desejo de soberania nos sistemas de pagamento de diferentes jurisdições podem alimentar a fragmentação e até mesmo restrições ao uso de algumas moedas. O surgimento de controles de capital programáveis e restrições granulares às carteiras é possível, e um sistema monetário internacional mais multipolar pode seguir.
A coexistência de múltiplas redes conectadas pode até fraturar o sistema monetário e financeiro se vários emissores privados ganharem participação de mercado e as plataformas de tokenização proliferarem. Mas esse mundo é inerentemente frágil. A história nos diz que o dinheiro privado é instável por todas as razões tradicionais ligadas à falta de credibilidade. Quando não são bem regulamentados e não são apoiados por um soberano que pode tributar e fazer cumprir contratos, o dinheiro privado geralmente gera grandes corridas. As próprias moedas soberanas podem ser instáveis quando a credibilidade de suas instituições – em particular, de suas instituições fiscais – é questionada. A cooperação e a regulamentação políticas internacionais são essenciais para evitar a fragmentação excessiva e a fragilidade financeira.
Privilégio de integridade
Este novo mundo correrá o risco de uma instabilidade ainda maior se a perda de credibilidade também vier da perda da integridade dos dados. O Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia do Departamento de Comércio dos EUA alertou, já em 2016, que os computadores quânticos podem em breve resolver problemas que os computadores convencionais não podem enfrentar. Conforme enfatizado por Fusa (2023), esses novos computadores serão capazes de quebrar muitos dos sistemas criptográficos de chave pública atualmente em uso.
Este problema é frequentemente ignorado. O desenvolvimento da criptografia pós-quântica, capaz de conter as invasões feitas por meio de computadores quânticos e clássicos, ademais, interoperável com protocolos e redes de comunicação existentes, está progredindo, mas o resultado é incerto, dada a corrida pelo poder do computador. Portanto, as redes monetárias mais expostas a hackers e à perda de sua integridade verão crises maciças de confiança e fugas de capital, o que pode estimular crises financeiras. Em tal mundo, a rede monetária com a menor superfície de ataque para hackers deve obter vantagem; poderá também reduzir os seus próprios custos de financiamento – isso poderia ser chamado de “privilégio de integridade”.
Para concluir, o impacto da tecnologia no sistema monetário e financeiro internacional será profundo, mas difícil de prever: ele será moldado por inovações imprevisíveis, políticas regulatórias e grupos de lobby. Haverá grandes riscos para a estabilidade financeira, incluindo o aumento da volatilidade das taxas de câmbio; ocorrerão ameaças às finanças públicas em muitas economias; e a concorrência entre as redes monetárias deverá ocorrer com maior probabilidade. Tudo isso pode resultar em grandes transferências de riqueza, o que alterará a economia política da regulamentação. A cooperação política internacional é, portanto, essencial. Finalmente, as novas tecnologias podem reorganizar o domínio da moeda internacional e resultar no surgimento de um privilégio de integridade.
Referências
Agur, Itai; Bauer, German Villegas; Mancini-Griffoli, Tommaso; Peria, Maria Soledad Martinez; Tan, Brandon (2025). Tokenization and Financial Market Inefficiencies. IMF Fintech Note 25/001, International Monetary Fund, Washington, DC.
Cardozo, Pamela; Fernández, Andrés; Jiang, Jerzy; Rojas, Felipe D (2024). On Cross-Border Crypto Flows: Measurement Drivers and Policy Implications. IMF Working Paper 24/261, International Monetary Fund, Washington, DC.
Fusa, Koji (2023). The Digital Money Wars. E-book.
Graf von Luckner, Clemens; Koepke, Robin; Sgherri, Silvia (2024). Crypto as a Marketplace for Capital Flight. IMF Working Paper 24/133, International Mone- tary Fund, Washington, DC.
Graf von Luckner, Clemens; Reinhart, Carmen M.; Rogoff, Kenneth (2023). Decrypting New Age International Capital Flows. Journal of Monetary Economics 138: 104–22.
Reuter, Marco (2025). Decrypting Crypto: How to Estimate International Stablecoin Flows.” IMF Working Paper 25/141, International Monetary Fund, Washington, DC.
[1] Professora de economia Lord Raj Bagri na London Business School, vice-presidente do Centre for Economic Policy Research e presidente da European Economic Association. O artigo aqui traduzido foi publicado em inglês em Finance and Development, número de setembro de 2025, publicação do Fundo Monetário Internacional (FMI).

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