Quem pode ser chamado de rentista?

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Introdução

O livro de Brett Christophers (já examinado em outro escrito), que chama o capitalismo de rentista[2], tem, como o próprio título já mostra, uma tese sobre o desenvolvimento contemporâneo desse sistema de produção, repartição e consumo. Para chegar a essa conclusão, ele se baseia numa distinção entre produzir para o mercado e possuir direito de obtenção de renda na economia mercantil. Contudo, bem examinada, esse entendimento não se sustenta teoricamente – mesmo que o livro seja bem interessante como uma expressão do rumo histórico recente desse sistema.   

É, pois, importante ver como ele põe essa distinção examinando um caso particular: a Arqiva, uma grande empresa britânica provedora de serviços de telecomunicação, “primariamente, não extrai, produz ou provê”, ou seja, não cria mercadorias, pois “o crucial em seu modelo de negócio não consiste em fazer algo; ao invés, consiste em ter”.  Eis que, segundo ele, ela não está na atividade de “extração de materiais (setor primário), de produzir industrialmente (setor secundário) ou de prover serviços (setor terciário)”; vale-se supostamente das demandas de consumidores e de outras empresas para extrair renda.

Em suma, Christophers julga que a Arqiva obtém renda porque detém propriedade – e não porque produz e vende mercadoria. Ela aparece assim como uma empresa rentista.

Note-se, agora, que esse autor define rentismo de uma maneira descritiva – não conceitual. Para tanto, ele toma acriticamente o termo “ativo” da contabilidade financeira e o apresenta como uma fonte de renda, sem determinar primeiro como essa renda é gerada no processo produtivo e como ela se articula com o resultado desse processo, ao longo do tempo. Assim, cai numa circularidade: “quaisquer que sejam as suas qualidades [como ativo], sempre há um ativo quando há renda de aluguel”.  “Aluguel” – continua – “é fundamentalmente a renda que provém do controle de um ativo; o rentista é aquele que recebe essa renda”.

Os termos dessa triangulação vêm da observação do que ocorre em certos mercados. Assim apresentados, eles se implicam mutuamente e, assim, se definem uns pelos outros: “sem ativo, sem renda de aluguel, sem rentista”, ou seja:

Desse modo, chega também a uma noção de renda de aluguel que depende das condições de mercado: “uso aqui efetivamente uma definição híbrida de renda de aluguel, ortodoxa e heterodoxa: é a renda derivada da propriedade, posse ou controle de um ativo escasso sob condições de competição limitada ou ausente”.  Nessa perspectiva, ele apresenta esquematicamente as formas do rentismo que julga existirem atualmente na economia capitalista:

Para melhor entender e criticar o seu argumento é bom ver como distingue entre produzir coisas e se apropriar de renda provinda do empréstimo de coisas por meio de um exemplo:

Uma casa é um bom exemplo para ajudar a ilustrar o que é e o que não é aluguel, assim como quem é e quem não é rentista. Suponha que uma construtora construa uma casa para um proprietário que, por sua vez, aluga a casa para um inquilino. (…) Tipos fundamentalmente diferentes de atividade econômica, atores e pagamentos estão envolvidos em cada caso. Há o pagamento pelo trabalho envolvido na construção da casa. (…) Assim, a construtora não é rentista; ela ganha dinheiro não por controlar o ativo, mas por criá-lo. A taxa de locação, por outro lado, é aluguel e o proprietário é rentista, visto que recebe pagamento apenas por ser o proprietário da casa e, portanto, ter a capacidade de cobrar de alguém pelo direito de ocupá-la.

Partindo desse exemplo é possível começar a criticá-lo.  Veja-se que apresenta o rentismo como decorrente de uma forma de extração de renda que parece, pelo menos à primeira vista, não ter qualquer contrapartida. Ora, isso não é correto, pois o proprietário, ao alugar a residência, cede em troca ao inquilino o valor de uso que ela possui como lugar de moradia. O aluguel, pois, é o pagamento pelo uso desse bem durável. Eis que é possível usufruir de bem dessa espécie sem possuí-lo como propriedade privada, pois basta alugá-lo.

Note-se, ademais, que o aluguel cobrado responde, pelo menos em parte, pela depreciação do imóvel, o que sugere que ele não advém de fato do direito de propriedade. Na verdade, advém da cessão temporária do valor de uso – algo que o direito de propriedade apenas torna possível. E o valor cobrado por esse acesso depende, sim, em parte, da escassez local de moradia. De qualquer modo, é preciso ver que produzir e possuir riqueza (construir a casa) e possuir riqueza produzida para emprestar no capitalismo (alugar a casa) requerem sempre a propriedade privada, ou seja, é preciso ter primeiro o terreno para poder ter, depois, a casa; ora, tendo a casa, o proprietário pode alugá-la.

Da troca mercantil

Agora, é preciso notar que não existe troca mercantil sem a contrapartida de transferência de algum valor de uso. Para entender o que está em questão aqui é preciso ver que há dois tipos de transação mercantil e que ambos estão assentados na propriedade e posse de mercadorias. Ora, essas unidades de valor de uso e valor de troca foram produzidas para serem levadas ao mercado: ou se vende o valor de uso da mercadoria como um todo, transferindo para outrem a sua propriedade e realizando o seu valor de troca, ou se aluga o seu valor de uso para outrem, sem transferir essa propriedade e sem realizar o seu valor de troca imediatamente, obtendo assim uma renda de aluguel. Quem paga aluguel não se torna dono do bem durável mercantilizado, apenas usufrui de seu valor de uso por um tempo determinado; ademais, isso tudo fica estabelecido por meio de um contrato.

Pode-se ilustrar esse segundo tipo de transação com exemplos clássicos os quais cobrem os dois primeiros casos elencados na tabela acima apresentada: o primeiro vem a ser o do proprietário de terra, membro de uma “classe ociosa”, que cede o seu valor de uso ao arrendatário, componente de uma “classe laboriosa”, para que ele possa produzir mercadoria que procurará vender no mercado específico. E o faz por um período determinado, mantendo assim a propriedade a terra. Ora, esse é o caso clássico de um “sujeito” social que merece ser chamado de rentista.

Mas também se pode apresentar o caso daquele que empresta dinheiro a outrem para obter um rendimento de juros; para tanto, ele compra um título de dívida emitido por esse outro, mantendo assim a propriedade do dinheiro emprestado. Ele transfere ao tomador do empréstimo apenas o valor de uso do dinheiro e o faz por um prazo determinado. Assim, essa outra pessoa pode usar o dinheiro para comprar ou investir, sabendo que, ao fim do prazo, terá de reembolsar o emprestador com o principal e os juros. Às vezes se considera o emprestador de dinheiro como rentista, mesmo se ele recebe juros e atua socialmente como capitalista.  

É de se notar agora que ambos esses tipos estão presentes na história do capitalismo – eis que existem desde os primórdios desse modo de produção. Assim se chega à conclusão que esse autor aponta para uma emergência histórica que é preciso reconsiderar – compreendendo-o de outro modo. Mesmo se tem razão sobre a expansão desse segundo tipo de troca no capitalismo contemporâneo, é preciso ver que o primeiro tipo acima mencionado permanece predominante. Logo, é preciso negar que o capitalismo tenha se tornado rentista mesmo tendo presente o sentido que ele dá ao termo.

No capitalismo clássico, a venda de mercadoria e a realização de lucro sobressaia como forma privilegiada do processo mercantil; a obtenção de renda por meio da cessão de direitos de uso de meios de produção permanecia anômala; se estava bem presente no campo, afigurava-se como um resquício do feudalismo que sobrevivera no capitalismo. Contudo, no capitalismo que aflorou no final do século XX e começo do século XXI, essa última lógica se expandiu tanto no âmbito do grande capital que se tornou necessário considerá-la como uma marca do capitalismo contemporâneo.

Então, tendo em mente que o segundo tipo de transação mercantil se tornou importante, talvez se deva distinguir agora entre um capital alienador (que usa o primeiro para se realizar) e o capital rentista (que emprega a segundo com essa mesma finalidade). Ora, essa distinção incorre num grave problema.  O termo rentista conota parasitismo, mas o capital alocado na produção de mercadorias que são alugadas pode ser produtivo no sentido de que emprega meios de produção e contrata força de trabalho para gerar valor de uso e valor.

Veja-se, agora, que a expansão acima relatada parece ter duas causas centrais. Antes de discuti-la brevemente, é preciso enfatizar que a produção de mercadorias continua central como forma de gerar riqueza capitalista. A primeira dessas causas vem a ser o advento da tecnologia de informação e comunicação, que permitiu a difusão das plataformas, um meio de produção que permite e mesmo requer compartilhamento por parte de inúmeras pessoas e empresas quanto – e essa é a contrapartida – a monopolização de mercados.

Mas essa causa não é única mesmo se essa tecnologia está presente agora na atividade econômica em geral, permitindo uma coordenação centralizada de ações econômicas de milhões de agentes econômicos, assim como conectar atividades econômicas que se encontram bem distantes umas das outras. Em particular, tornou possível o crescimento vertiginoso da socialização do capital e, assim, do número de pessoas que recebem juros, dividendos e ganhos de capital. As concessões de gestão dos bens públicos como estradas, portos etc. também contribuíram para a elevação do volume de cessão de direitos de uso de meios de consumo e de produção.

Rentismo ausente

 O rentismo, tal como é pensado por Christophers, se afigura por isso mesmo como bem abrangente; eis que inclui um conjunto amplo de relações sociais, as quais dão origem à diferentes formas de apropriação de renda. Pois, para ele, rentista é empresa – e o seu proprietário – que vive de aluguel (cobrado sob diversas formas).  Na tradição da economia clássica, diferentemente, designa-se por rentistas os proprietários fundiários que alugam a terra ou minas possuídas e os capitalistas que se afastaram da produção mercantil e que são meros proprietários de títulos, ações etc. Nessa última perspectiva, portanto, rentista designa apenas os proprietários que se mantêm ausente da produção de mercadorias, mas se sustentam obtendo renda. 

Com base na visão da economia clássica, pode-se mostrar que emprestar o valor de uso de mercadorias não implica sempre em rentismo. Mesmo se essa noção difere da noção empregada por Christophers, considerá-la aqui ajuda a compreender o problema. E, para tanto, pode-se usar exemplos que ele mesmo fornece. Considere-se as plataformas[3] que provêm serviços de telecomunicação e de processamento de dados – a Arqiva já mencionada vem a ser um exemplo –, as quais são apontadas no livro que se estuda como empresas rentistas. O autor abre o seu exame dessa modalidade de negócio examinando a empresa London Stock Exchange (LSEG), dona de uma plataforma que intermedia as transações com ativos financeiros na City de Londres.  Leia-se, pois, o que diz:

A LSEG é fundamentalmente uma plataforma rentista. (…) Eis que uma bolsa de valores é, precisamente, uma estrutura informacional destinada a uma atividade específica – a compra e venda de ativos financeiros. A LSEG não cria ativos financeiros, nem os negocia; em vez disso, fornece a plataforma onde essa negociação pode ocorrer com segurança e tranquilidade. Assim, facilita a negociação – ajuda a criar mercados financeiros.

Mesmo se a LSEG, portanto, vive de aluguel (cobrando de algum modo pelo uso da plataforma), ela produz e provê um serviço como mercadoria, ou seja, um valor de uso que é consumido ao mesmo tempo em que é produzido e que tem um valor de troca. Ora, ao vender esse valor de uso por um período segundo o seu valor de troca, o capital investido na plataforma se realiza e obtém retorno, tal como é a norma no capitalismo. A plataforma é um meio de produção que proveio de um investimento de capital-dinheiro feito por um ou mais capitalistas, os quais buscam valorizar o valor que detêm. Ela subsiste como capital funcionante de uma empresa que se empenha em obter ganhos como todas as empresas, como todo capital.

Assim, a LSEG é remunerada – por meio de taxas cobradas pela admissão no sistema e pelo valor das operações realizadas – não porque seja dona da plataforma – mesmo se essa condição subsiste como imprescindível –, mas porque fornece esse tipo de serviço que é útil para o funcionamento do mercado de capitais e, assim, para o sistema capitalista.

Se se toma o termo “indústria” no seu sentido amplo, a LSEG pode ser considerada como uma espécie de indústria que atua no transporte e estocagem de mercadorias – ainda que se trate de mercadorias financeiras. Constitui-se, portanto, como infraestrutura do comércio de representações de capital, o qual é operado em geral por corretoras de valores.  Ela produz e vende mercadoria – um serviço posto como mercadoria. Assim, gera lucro, o qual advém do pagamento pelo uso de um meio de produção que está posto como capital. E, em última análise, esse ganho, mesmo se não assume a forma de prestações pagas, por exemplo, mensalmente, responde implicitamente pela cobrança de aluguel pelo uso da plataforma.

Nesse momento deve-se observar que as plataformas não funcionam sozinhas; para entrarem em operação, é requerido o concurso de trabalhadores contratados, seja como assalariados seja como “autônomos”. Note-se de passagem, por isso mesmo, que a mercadoria força de trabalho também não é vendida como um todo – se o fosse, ter-se-ia uma forma de escravidão e não de assalariamento. Como bem se sabe, o que o trabalhador vende para o capitalista, por um período determinado, é o valor de uso da força de trabalho, ou seja, o trabalho como tal. Dizendo de outro modo e se conformando à linguagem empregada no livro, o trabalhador vende somente o serviço proporcionado pelo uso de sua força de trabalho. 

As plataformas em geral são “fábricas” de intermediação: a LSEG, como foi visto, atua entre vendedores e compradores de ativos financeiros; já a Arqiva conecta empresas de mídia que produzem informações e entretenimentos como mercadorias com consumidores de sinais de TV e rádio que desejam adquiri-los. Mas há outros tipos: há empresas, como a Uber, que intermediam o fornecimento de serviços de taxi entre motoristas e seus veículos com os demandantes de viagem; outras empresas, como a Amazon e o Mercado Livre, são especialistas no comércio on-line, pois conectam compradores e vendedores de mercadorias comuns; mas também há empresas, como a Airbnb, que intermedia a relação comercial entre locatários e locadores por meio da qual são alugadas casas e apartamentos por períodos determinados.

    Vale registrar, finalmente, o caso das empresas que conectam anunciantes com as pessoas em geral que buscam informações das mais variadas espécies ou interações sociais na internet, como é o caso respectivamente do buscador da Google e da mídia social Facebook. Essas empresas fornecem um serviço gratuitamente com a finalidade de apreender a atenção das pessoas, mas também de acumular informações sobre os seus gostos e costumes. A transação comercial aqui é indireta; à medida que passam a deter esses “ativos” essas empresas de mídia podem obter ganhos vendendo publicidade para anunciantes que querem lhes vender as suas mercadorias. Os anunciantes em geral alugam espaço virtual para colocar as suas mensagens que visam atingir determinados “alvos”, os quais são escolhidos pelo algoritmo da plataforma.

Em todos esses casos, apesar da categoria aluguel não aparecer às vezes explicitamente como forma de liquidação da transação, é disso que se trata em última análise. Pois, aluguel é sinônimo de taxa pelo uso, ou seja, consiste no pagamento pelo emprego de um meio de produção que é, ao mesmo tempo, um meio de consumo. As formas variantes de cobrança se devem obviamente às características específicas da forma que assume o negócio.  

Portanto, após essa pequena viagem conceitual, chega-se à conclusão de que a relação de aluguel – e mesmo o rentismo – se tornou, sim, mais importante com o evolver do capitalismo; contudo, algumas das variantes de rentismo tal como apontadas por Christophers não são atividades parasitárias, pois, ao contrário, afirmam a relação de capital e, assim, o capitalismo como tal.  


[1] Professor aposentado da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blogue na internet: https://eleuterioprado.blog

[2] Christophers, Brett – Rentier capitalism – who owns the economy and who pays for it? Londres: Verso, 2020.

[3] Os casos da propriedade intelectual, os contratos de serviços e as concessões de infraestrutura, por falta de espaço, não serão discutidos neste artigo.

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