Neste artigo, Nick Johnson tenta combinar as teses de Nicholas Kaldor e Michael Pettis para justificar as tarifas como parte de um esforço para reequilibrar o comércio internacional atualmente desbalanceado principalmente em favor da China. Ele sugere, que as tarifas devem ser complementadas com políticas de renda. Nesse sentido, ele julga que o salário real deve aumentar na China, mas curiosamente não sugere que ele deve ser reduzido nos Estados Unidos. Ao fim e ao cabo, as suas sugestões parecem ingênuas já que não levam em conta, comparativamente, o desenvolvimento da produtividade do trabalho vis-à-vis a evolução dos salários reais nas últimas décadas e, assim, a evolução da lucratividade. Ora, diante dessa evolução, as perspectivas de lucratividade dos diferentes ramos da produção são cruciais.
Segue o artigo de Nick Johnson, publicado no blogue: The political economy of development em 21/02/2025
Por que o protecionismo está sendo ampliado? De tarifas sobre produtos chineses a subsídios para fábricas de semicondutores, governos em todo o mundo estão repensando como tratar o comércio internacional. Várias décadas atrás, Nicholas Kaldor argumentou que a manufatura era a chave para o crescimento sustentado – enquanto hoje, Michael Pettis adverte que os desequilíbrios comerciais decorrem de escolhas de política doméstica. À medida que as tensões comerciais globais aumentam, essas duas perspectivas contrastantes podem nos ajudar a entender o que realmente está impulsionando essa virada protecionista.
A postagem da contrastou o modo como Donald Trump trata as tarifas com as ideias do economista Michael Pettis sobre a reforma da economia global para reduzir os desequilíbrios comerciais e promover uma prosperidade mais ampla e sustentável. Como acho o trabalho de Pettis atraente, a postagem de hoje se baseia mais uma vez em suas teses, as quais são comparadas com as de Nicholas Kaldor, economista de Cambridge já falecido.
Kaldor foi um conselheiro de governos, um pensador inovador e foi influenciado pelo grande John Maynard Keynes, entre outros. Ele foi brilhante em combinar teoria econômica com evidências empíricas, a fim de produzir políticas que ele esperava que melhorassem a economia e a sociedade. Ele era de esquerda, mas apreciava o dinamismo do capitalismo e sentia que isso poderia ser usado para alcançar resultados sociais progressivos.
Donald Trump parece ser bom em criar incerteza sobre a política doméstica e internacional. Tem por objetivo empregar tarifas sobre as importações dos EUA como uma manobra de negociação, como um instrumento para aumentar a receita tributária enquanto reconstrói a capacidade de fabricação e reequilibra a economia.
Muitos economistas duvidam que suas políticas possam alcançar esses resultados; eles argumentam que elas provavelmente piorarão as coisas na frente econômica, ao mesmo tempo em que azedarão as relações internacionais. Mas as tensões comerciais globais estão aumentando, principalmente entre os EUA e a China. De qualquer modo, as políticas industriais que visam apoiar os setores empresariais domésticos e impulsionar a competitividade, o crescimento e o emprego, embora nunca tenham realmente desaparecido, estão se tornando um instrumento de política mais evidente agora.
A economia de Kaldor e Pettis está em parte preocupada com desequilíbrios estruturais na economia global, como déficits comerciais. Uma vez que é discutível que os desequilíbrios de hoje estão desempenhando um papel importante no aumento do protecionismo, achei que seria útil fazer esta pergunta central: como as ideias desses dois economistas lançam luz sobre o cenário comercial em mudança de hoje e o incremento de medidas protecionistas?
Kaldor fala sobre comércio e crescimento
A economia, para Nicholas Kaldor, estava em constante evolução junto com o estado do mundo. Nessa perspectiva, ele frequentemente apresentava novas ideias para a formulação de políticas progressistas. Como linha geral, ele enfatizava a importância do setor manufatureiro para o crescimento econômico. Argumentou que esse setor se caracterizava por retornos crescentes de escala: uma escala crescente de produção era geralmente associada à queda dos custos médios. Isso tende a aumentar a variedade de processos, como uma crescente divisão do trabalho e uma especialização cada vez maior, bem como aprender fazendo no chão de fábrica.
Tais processos provavelmente significariam que um crescimento mais rápido no setor manufatureiro estimularia um crescimento mais rápido da produtividade, permitindo preços, produtos e processos de produção mais competitivos. Esses últimos resultados permitiriam que as empresas capturassem maiores fatias dos mercados globais, levando a novos aumentos na escala de produção, maior produtividade e assim por diante, dando origem a um ciclo virtuoso de causalidade cumulativa.
Em outras palavras, sucesso gera sucesso. Em contraste, um crescimento mais lento da produção estimularia avanços mais lentos na produtividade e na competitividade, em um ciclo vicioso de declínio. Na ausência de intervenção dos formuladores de políticas governamentais, esses ciclos virtuosos e viciosos tenderão a persistir, levando a uma divergência no desempenho do crescimento econômico entre as regiões domésticas, bem como globalmente entre as nações.
Tudo isso significa que, na visão de Kaldor, os exportadores de manufatura mais bem-sucedidos podem crescer persistentemente mais rápido do que seus pares menos bem-sucedidos. Ele também argumentou que os salários tenderiam a ficar atrás da produtividade nas nações com crescimento mais rápido, o que sustentaria sua vantagem competitiva. Também daria origem a superávits comerciais estruturais persistentes, com o crescimento das exportações superando o crescimento das importações ao longo do tempo (este ponto também é sustentado por Michael Pettis, como veremos abaixo, mas, ao contrário de Kaldor, ele oferece algumas razões abrangentes).
A ênfase de Kaldor na manufatura como um motor de crescimento o levou a argumentar que os países de industrialização tardia precisam proteger seus setores à medida que se industrializam, ao mesmo tempo em que os estimulam a alcançar a competitividade das economias mais ricas e sua capacidade de exportar globalmente. Na ausência de um período bem administrado de proteção dessas indústrias “nascentes”, a industrialização e o desenvolvimento bem-sucedidos eram muito menos prováveis. Assim, o livre comércio não era uma panacéia universal a serviço do desenvolvimento econômico, e o comércio administrado em contextos particulares era mais sensato.
As tensões comerciais de hoje através das lentes de Kaldor
As atuais políticas de comércio internacional podem ser vistas como parte de um renascimento das políticas industriais que visam promover setores industriais específicos que são considerados estrategicamente importantes, seja para a segurança nacional ou por uma variedade de razões econômicas. Os EUA estão preocupados com seu déficit comercial com a China faz já algum tempo.
Em uma gama crescente de setores, como veículos elétricos e painéis solares, as empresas chinesas estão penetrando rapidamente nos mercados globais e superando rivais estrangeiros. Na esteira da fraca demanda doméstica, as exportações chinesas em expansão estão dando origem a um grande superávit comercial com o resto do mundo. As exportações chinesas de manufatura são competitivas o suficiente para prejudicar a produção em outros países.
Enquanto os consumidores estrangeiros estão se beneficiando de preços mais baratos, os produtores locais abandonam a produção. A política industrial da China desempenhou um papel importante em sua ascensão ao domínio global da manufatura, e a participação do resto do mundo na produção industrial global vem caindo. Se Kaldor estiver certo sobre o motor do crescimento, essa tendência se apresenta como uma preocupação para os países que estão ficando para trás.
Seguindo a lógica de Kaldor, o renascimento de políticas industriais e comerciais mais intervencionistas pode ser uma forma de reverter a desindustrialização que afetou os países mais ricos e reiniciar os processos de causalidade cumulativa descritos acima. Setores estratégicos como semicondutores e baterias, com seu papel generalizado na economia moderna, necessariamente fariam parte disso.
Pettis sobre os desequilíbrios globais de hoje
As ideias de Michael Pettis não estão muito longe das teses clássicas de Kaldor, mas talvez sejam mais sutis. Como se sabe, hoje em dia, os economistas heterodoxos tendem a ser aqueles que ainda favorecem a manufatura como motor do crescimento; por isso, muitos ainda seguem o exemplo do trabalho de Kaldor.
No entanto, mesmo esses pensadores não convencionais observam que a divisão atual do trabalho significa que elementos do processo de produção que costumavam ser classificados como manufatura podem agora ser definidos como parte do setor de serviços, devido à crescente divisão do trabalho e especialização à medida que as economias crescem e se desenvolvem.
A terceirização do marketing é talvez um exemplo clássico; a criação de software de computador, que é hoje em dia usado em cada vez mais produtos manufaturados, pode ser outro exemplo. Talvez seja mais correto dizer que os motores do crescimento são as empresas e setores que têm o maior potencial para alcançar economias de escala cada vez maiores e consequentes melhorias na produtividade, independentemente do setor em que estejam.
Um dos principais argumentos de Pettis é que os desequilíbrios comerciais estruturais de hoje se devem à supressão da demanda doméstica nas economias superavitárias, como China e Alemanha. No entanto, isso faz parte do modelo econômico desses países, que priorizou a manufatura e as exportações. Pettis chama isso de modelo de desenvolvimento de “alta poupança”. Políticas que, em termos gerais, transferem renda das famílias para produtores e exportadores e, no caso da China, gastos com infraestrutura e até recentemente habitação, significam que os setores exportadores são incentivados a expandir e investir em nova capacidade.
A relativa fraqueza do crescimento da renda familiar, devido talvez aos salários atrasados em relação à produtividade em toda a economia, taxas de juros reprimidas no sistema financeiro ou uma moeda fraca, apesar de um grande superávit comercial, significa que a participação do consumo no PIB é mantida. Isso enfraquece a demanda interna e torna a economia mais dependente da demanda externa para suas exportações. Para economias do tamanho da China e da Alemanha em relação ao resto do mundo, isso cria desequilíbrios globais disfuncionais.
Pettis diz que a política industrial da China funcionou bem na aceleração do crescimento por algum tempo, mas se tornou um problema, tanto nacional quanto globalmente, nas últimas duas décadas. O crescimento tem vindo a abrandar, apesar de uma percentagem muito elevada do investimento no PIB global, e a percentagem da dívida no PIB tem vindo a aumentar, o que indica que grande parte deste investimento se tornou relativamente improdutivo, enquanto a sustentabilidade do crescimento tem vindo a diminuir.
Para Pettis, os superávits comerciais estruturais crônicos, de tal modo que as exportações excedem persistentemente as importações em grande parte do PIB, indicam que a demanda doméstica é muito fraca e está sendo desviada do consumo.
O que se afigura como competitividade internacional, alavancada por um forte setor manufatureiro exportador para o pais em questão, é para muitos outros consequência de uma má distribuição de renda; esta privilegia a produção e as exportações e desfavorece as famílias comuns e o consumo, incluindo o das importações. Se as políticas industriais não devem criar esses desequilíbrios problemáticos, tanto doméstica quanto globalmente, elas precisam evitar suprimir e enfraquecer estruturalmente a demanda interna.
Kaldor versus Pettis
Os dois autores compartilham um terreno comum em sua visão de que os desequilíbrios do comércio global são muitas vezes estruturais e que eles decorrem de um atraso no crescimento dos salários em relação ao crescimento da produtividade. No entanto, enquanto Kaldor – até onde eu posso ver – não tinha certeza sobre as causas finais desse problema, Pettis atribui isso a políticas e instituições que suprimem o crescimento da renda familiar a serviço do estímulo à produção.
Kaldor vê a manufatura como o motor do crescimento e defende políticas industriais, enquanto Pettis coloca mais ênfase na dinâmica do lado da demanda, de modo que a política hoje deve ter como objetivo reequilibrar a demanda doméstica, tanto internamente quanto globalmente. Kaldor provavelmente apoiaria políticas como a lei CHIPS dos EUA para estimular um renascimento da manufatura; Pettis não parece ser contra essa prática, mas ele argumentaria que, sem uma demanda doméstica mais forte e um reequilíbrio das economias de alta poupança e alto superávit comercial, a eficácia das políticas industriais provavelmente será mais restrita e o aumento da dívida e da instabilidade global continuarão.
Lições políticas
Então, que lições políticas podemos tirar de tudo isso? Kaldor pode argumentar que um renascimento da política industrial poderia desempenhar um papel no fortalecimento da manufatura e do crescimento nas economias avançadas que recentemente perderam para a China, enquanto Pettis alertaria que, se as restrições da demanda doméstica não forem abordadas nas economias superavitárias, a instabilidade global provavelmente persistirá. O apoio à indústria estratégica, juntamente com um impulso para o reequilíbrio nacional e global, pode ser um meio-termo, embora seja improvável que seja simples em um mundo de crescentes tensões e instabilidade.
Em conclusão
Ambos os pensadores oferecem lições para as relações comerciais de hoje, com ênfase nos persistentes desequilíbrios comerciais estruturais. Continua a haver um papel para a política industrial, que inevitavelmente afeta o comércio, mesmo nos países avançados, mas na ausência de esforços para reequilibrar a economia mundial, será mais difícil implementá-la com sucesso.
A manufatura é importante, mas hoje em dia não é o único motor de crescimento; pelo menos, pode fazer parte de qualquer estratégia de crescimento e desenvolvimento bem-sucedida, mas as linhas entre os setores produtivos tornaram-se mais tênues. A demanda agregada também é importante. Uma abordagem equilibrada, consciente do potencial da manufatura, mas também da estrutura e do nível de demanda da economia como um todo, pode oferecer um caminho produtivo através das águas protecionistas de hoje.

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