Autores: Stephen Maher e Scott Aquanno[1]
A financeirização vem junto com a própria evolução do capitalismo; ela opera em suas tensões e antagonismos. Uma vez que as contradições desse sistema nunca podem ser totalmente resolvidas, ele deve mudar continuamente para superar as barreiras e crises que elas geram – por meio de um processo semelhante à adaptação darwiniana. O conflito de classes é manifestação de sua contradição – ainda que não única – mais importante.
Embora o colapso do mercado de ações de 1929 tenha sido seguido, durante toda a década de 1930, por ondas de luta da classe trabalhadora, ele revelou também as profundas instabilidades do sistema em que o capital financeiro está centrado nos bancos. Isso estimulou o Estado a separar os bancos da governança corporativa, o que levou as corporações industriais a assumirem novas funções financeiras. Assim, essas empresas se adaptaram aos desafios de gerenciar operações cada vez mais complexas, internacionalizadas e diversificadas, por meio da reorganização de um mercado financeiro interno na forma de um planejamento corporativo.
Quando a militância da classe trabalhadora espremeu os lucros corporativos na década de 1970, a financeirização e a globalização impuseram uma nova disciplina de classe que visava reduzir os custos trabalhistas, restaurando assim os lucros, o que permitiu que a acumulação fosse retomada. O regime de hegemonia financeira que daí emergiu dependeu ainda dos bancos, mas se centrou gradativamente num novo tipo de investidor institucional, o qual se caracterizou por deter grandes concentrações de ações.
Essas instituições, que dependiam de uma complicada cadeia de trocas financeiras para gerar crédito, estabeleceram um novo sistema de finanças fundado em novos mercados. O colapso desse sistema esteve no centro da crise financeira de 2008 – a crise mais profunda do capitalismo desde a década de 1930. Por meio então de uma série de intervenções drásticas e sem precedentes, o Estado reestruturou a ordem financeira até então existente. Ao fornecer ampla liquidez para estabilizar o sistema, o estado inadvertidamente facilitou a consolidação de uma nova forma de capital financeiro centrada em empresas de gestão de ativos.
Ao traçar as raízes da financeirização contemporânea apontamos que o capital financeiro clássico terminou em certo momento na década dos anos 1930. Em sequência, enfatizamos que as finanças e a indústria não são antagônicas; ao contrário, mostramos que elas estão fundamentalmente interligadas. Além disso, ilustramos como as finanças têm sido essenciais para a saúde, o dinamismo e a competitividade da indústria desde os primeiros momentos de existência do capitalismo corporativo. As finanças nunca foram ou são um problema, pois se apresentam sempre como uma solução para as contradições sistêmicas do capitalismo.
Essa visão sobre o modo como as finanças têm funcionado no desenvolvimento capitalista difere acentuadamente dos muitos relatos que veem a sua ascensão como um sinal de decadência, sustentando que ela surgiu apenas em um estágio “tardio” relativamente recente. Desse modo, a nossa análise mostra bem quão equivocadas são as prescrições, implícita ou explicitamente contidas nessas obras. Eis que elas visam retornar a uma forma mais saudável e prévia ao capitalismo financeirizado. É possível destilar várias teses de nossa análise e elas se constituem como desafios importantes para as teorias da financeirização:
Tese 1: A financeirização não é nova. A financeirização é frequentemente considerada um fenômeno especificamente neoliberal originado na década de 1980. Como Hilferding já havia entendido no início do século XX, certas formas de financeirização já estavam presentes desde o começo da emergência do capitalismo corporativo. Para ele, a principal característica da corporação consistia em permitir que a indústria fosse “operada com capital monetário.
A sociedade anônima substituiu a propriedade pessoal de ativos industriais pela propriedade impessoal de ações negociáveis – instrumentos monetários que também permitem o controle das empresas industriais. O controle sobre a produção passou a ser reorganizado em torno da posse de capital-dinheiro, em vez da propriedade direta do capital fixo, ou seja, das máquinas e das fábricas. Consequentemente, durante o período clássico do capital financeiro, a posse e a concentração de grandes somas de dinheiro, assim como da capacidade de gerar crédito, permitiu aos bancos desempenharem um papel mais ativo na formação e no controle de corporações.
Após o desaparecimento dos bancos de investimento, uma nova forma de financeirização corporativa surgiu durante o período gerencial – e ela foi sempre considerada como o auge do capitalismo “antes que fosse financeirizado”. Durante as décadas do pós-guerra, as corporações industriais tornaram-se, pouco a pouco, instituições financeiras. Lucros muito altos e investidores pouco ativos permitiram que os gerentes industriais mantivessem o controle dos grandes volumes de lucros retidos; estes eram emprestados em parte por meio de mercados financeiros, criando um sistema que entrava em concorrência direta com os bancos.
Assim, essas empresas foram se adaptando aos desafios da internacionalização; por meio da diversificação e da escala crescente da produção, elas desenvolveram mercados de capitais internos. Nesses mercados, os principais executivos alocavam capital-dinheiro no que viam cada vez mais como um portfólio de ativos financeiros concorrentes. Esse processo já estava bem encaminhado quando o poder do investidor ressurgiu na década de 1980; agora, ele assumiu já a forma de propriedade concentrada das empresas gestoras de ativos.
Tese 2: As finanças e as indústrias não estão separadas entre si. O controle sobre o capital é inerentemente financeiro: depende da capacidade de acessar dinheiro em quantidade suficiente para ser colocado em movimento de modo a gerar lucro. O poder econômico do capital resulta acima de tudo da capacidade de investimento direto, que determina o uso das capacidades produtivas da sociedade.
Todos os capitalistas são, em certo sentido, financistas; eles estão sempre frente a escolhas de investir em uma coisa ou outra e de buscar as oportunidades mais lucrativas. No entanto, o capital é dividido em frações: as finanças desempenham um papel específico na estrutura geral da acumulação, circulando competitivamente o investimento entre os vários ramos da produção. As finanças dependem dos lucros industriais para receber juros, enquanto a indústria se envolve com o sistema financeiro para levantar investimentos e fazer circular o capital. Mesmo quando não fundidos na forma do capital financeiro clássico, a finança e a indústria são profundamente interdependentes.
As estratégias políticas que visam isolar as finanças como a causa do “mau” capitalismo, em oposição à “boa” manufatura, estão, assim, fadadas a falhar. Por um lado, os capitalistas entendem instintivamente os ataques às finanças como desafios ao capital como um todo. Mais fundamentalmente, esse tipo de enquadramento falha em avaliar até que ponto, de uma forma muito material, os interesses da finança e da indústria se tornaram quase indistinguíveis.
Não é possível separar um grupo discreto de industriais que foram vítimas da financeirização, ou seja, de financistas que dela se beneficiaram. Enquanto a reestruturação interna da empresa converteu os gestores industriais em financiadores, a globalização tornou as finanças ainda mais essenciais para a produção industrial. E a natureza distintamente de longo prazo das estratégias de investimento passivo que sustentam a forma atual de capital financeiro levou a uma interconexão especialmente estreita entre financistas e corporações industriais.
Tese 3: A financeirização não significa o declínio do capitalismo. O crescimento e o empoderamento das finanças não são sinais de que o capitalismo está entrando em colapso. De fato, os capitalistas ficariam mais surpresos se ouvissem que financeirização das últimas décadas lhes foi prejudicial. A financeirização foi fundamental para resolver a crise dos anos 1970; ela restaurou a lucratividade industrial, abrindo-lhe também o acesso às volumosas forças de trabalho da periferia, que podiam ser remuneradas com baixos salários para ritmos de trabalho intensificados.
Hoje, os lucros e a remuneração gerencial são altíssimos. Os investidores, por sua vez, enriqueceram com o aumento dos preços das ações e do pagamento de dividendos. Nada disso veio em detrimento do investimento corporativo ou dos gastos com P&D, que também permaneceram altos. As finanças estabelecem continuamente as condições para que as multinacionais americanas permaneçam as mais dinâmicas e competitivas do mundo.
Na verdade, os problemas das finanças são os problemas do capitalismo. A financeirização aprimorou a disciplina competitiva nas empresas industriais e forneceu aos gerentes as ferramentas para buscar novas estratégias de maximização de lucros. Assim como a propriedade concentrada de ações permitiu que os bancos de investimento organizassem corporações no século XIX, hoje ela permite que as instituições financeiras desempenhem um papel ativo e direto no controle do capital industrial e na reestruturação da corporação.
A realocação competitiva de capital pelo sector financeiro canaliza a poupança para os mercados mais produtivos e mais rentáveis. Dessa forma, a financeirização facilitou a formação de redes dinâmicas, competitivas e flexíveis de produção e investimento globais. O fato de isso ter intensificado a exploração e a disciplina do trabalho não aparece como um problema para o capital, pois significa que foi bem-sucedido no uso dessas novas estratégias.
Tese 4: Financeirização não é monopolização. Ver a financeirização da corporação não financeira como uma mera reorganização que realoca o capital-dinheiro falha porque passa a ver as grandes corporações como “monopólios”. O desenvolvimento capitalista é frequentemente retratado como começando com uma fase “competitiva”, que foi superada por uma fase “monopolista”. Isso pressupõe uma teoria quantitativa da concorrência, segundo a qual a competitividade é uma função do número de empresas em qualquer setor específico.
De acordo com essa visão, à medida que o número de empresas diminui com maior concentração e centralização ao longo do tempo, a concorrência sucumbe à monopolização à medida que empresas gigantes estabelecem preços e colhem lucros de monopólio. No entanto, a financeirização significa que as empresas não estão necessariamente vinculadas a setores específicos: elas alocam seu capital-dinheiro da maneira que for mais lucrativa em operações distintas, entre diferentes instalações e entrando em setores inteiramente novos.
O capitalismo gera, sim, tendências à concentração, centralização e financeirização. A competitividade não resulta do número de empresas em um mercado, mas da mobilidade do capital: há aqui o processo pelo qual ele flui para as esferas que produzem os maiores retornos e para longe daquelas que produzem retornos mais baixos. As organizações capitalistas que facilitam esse movimento de forma mais eficaz são as que se mostram como as mais competitivas.
Na medida em que as finanças tornam o capital mais móvel, que reduzem os custos de transação e que facilitam a circulação de capital entre setores e no espaço geográfico, tornam o capital mais, e não menos, competitivo. A crescente mobilidade de capital, por sua vez, exerce uma tremenda pressão competitiva para maximizar a eficiência e os lucros. E isso ocorre à medida que os trabalhadores competem por empregos, os estados competem por investimentos, os subcontratados competem por contratos e as corporações competem para desenvolver e controlar tecnologias, propriedade intelectual e formas organizacionais.
Tese 5: O Estado nunca “recuou”. As medidas tomadas para lidar com a Covid-19 foram vistas como o prenúncio do “retorno do Estado”. Isso pressupõe que o Estado tenha recuado durante os anos neoliberais em que prosperou o laissez-faire. Pelo contrário, a crescente complexidade do capitalismo impulsionou a integração cada vez mais profunda do poder do Estado no sistema econômico. E isso não ocorreu por meio de um simples acúmulo linear de funções.
Em vez disso, as funções estatais na economia emergiram por meio de uma série de rupturas, nas quais cresceram não apenas a extensão dessas funções, mas também qualitativamente. A dimensão qualitativa foi profundamente remodelada na redefinição da relação entre o Estado e a economia. Durante o período gerencial, a hegemonia das corporações industriais foi apoiada pelo complexo militar-industrial, bem como por programas sociais que impulsionaram a demanda efetiva. O estado neoliberal concentrou o poder no Federal Reserve e no Tesouro, que estavam mais intimamente integrados às finanças.
A diferença entre essas formas de Estado não é apenas uma questão de grau, mas de tipo. O estado neoliberal estava mais direta e organicamente voltado para a acumulação de capital. Contudo, isso não representava simplesmente em fazer “mais” do que o Estado do New Deal fizera. Em vez disso, era um conjunto institucional qualitativamente diferente, que emergiu através do processo de luta de classes como um reflexo e apoio à hegemonia das finanças.
O Estado avesso ao risco pós-2008 integrou-se ainda mais profundamente o sistema financeiro. Esse Estado internalizou radicalmente os fundamentos básicos do sistema de finanças baseadas no mercado que tomou forma durante os anos neoliberais e integrou ainda mais os enormes megabancos ao poder estatal. Acima de tudo, ele se orientou pela prática central de redução de riscos, ou seja, pelo uso do poder do Estado para absorver ou desviar o risco financeiro. A inflação dos preços dos ativos que isso suportava era essencial para o desenvolvimento do novo capital financeiro.
Tese 6: O capital financeiro é algo que se distingue do neoliberalismo. É certamente verdade, como disse Adolph Reed, que o neoliberalismo é “capitalismo sem oposição da classe trabalhadora”. Outros, com a mesma razão, identificaram o neoliberalismo como sinônimo de promoção estatal de políticas pró-mercado. O problema não é que essas observações estejam erradas, mas que, como definições, elas são muito gerais.
Ambos são compatíveis com mais de um regime de acumulação de capital: enquanto o Estado capitalista sempre reproduz a dependência do mercado de uma forma ou de outra, certamente não há nada de distintamente neoliberal na derrota da classe trabalhadora nas mãos do capital e do Estado. Como resultado, torna-se muito difícil apreciar como o neoliberalismo poderia terminar sem uma mudança no equilíbrio de forças entre as classes sociais. Se isso ocorresse, ter-se-ia (supostamente) a institucionalização de algo parecido com o que se imagina que foi o capitalismo “keynesiano” do pós-guerra.
Ora, as coisas ficam muito mais claras se se define as fases do desenvolvimento capitalista pelas distintas formas de governança corporativa, poder estatal e hegemonia de classe que as caracterizam. Mesmo que a derrota da classe trabalhadora seja dificilmente revertida, ainda é bem possível observar que o capitalismo acionário e neoliberal foi substituído por um novo capital financeiro dominado por empresas de gestão de ativos.
A consolidação do Estado avesso ao risco, com base em uma série de novas práticas econômicas, também sugere que um novo período se iniciou e está em andamento. No entanto, o futuro desse novo capital financeiro é incerto. De fato, o poder contínuo das forças pró-austeridade impediu a formulação de um novo paradigma político coerente, apesar dos apelos dos capitalistas financeiros e dos formuladores de políticas. Resta saber se a hegemonia dessa nova fração de classe pode se consolidar, principalmente à luz da volatilidade do mercado de ações e do aumento das taxas de juros.
De qualquer modo, saiba-se que esses argumentos são desenvolvidos em detalhe em nosso livro (The fall and rise of American finance – from J. P. Morgan to BlackRock), no qual apresentamos os rumos da queda e da ascensão das finanças americanas desde a década de 1880 até o presente.
[1] Terceira parte do primeiro capítulo do livro The fall and rise of american finance – From J. P.Morgan to BlackRock. Londres e Nova York: Verso, 2024, escrito pelos dois citados professores do Departamento de Ciência Política da Universidade Técnica de Ontario, Canadá. Correios eletrônicos: scott.aquanno@ontariotechu.ca e stephen.maher@ontariotechu.ca.

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