É o trabalho abstrato universal?

Publica-se aqui um escrito enigmático – como sempre – do mais produtivo filósofo de todos os tempos, Slavoj Žižek ! Artigo que, aliás, já foi publicado também por outros. Mas aqui isso feito com o objetivo de criticá-lo – não para pô-lo no pódio. Leia, portanto, o antigo anterior também aqui publicado: É Žižek um intelectual sério?

Autor: Slavoj Žižek [1] Tradução: Lucas Tretin Reich. Original: aqui

Na medida em que não se pronuncia sobre o papel fundamental que a ciência moderna desempenha nos circuitos do capital, Kohei Saito pensa abstratamente, no sentido hegeliano de abstrair ou ignorar as circunstâncias concretas. E em nenhum lugar essa abstração é mais palpável do que em sua afirmação na qual o trabalho abstrato já existe nas sociedades pré-modernas, que ele não é (como o valor) uma forma puramente social, que surge apenas por meio da troca de mercadorias. Ao fazer isso, Saito ignora o fato crucial de que a noção de trabalho abstrato de Marx pressupõe a ciência moderna, especificamente a termodinâmica do século XIX.

Para provar que “o trabalho abstrato também é um elemento material do processo de trabalho” (SAITO, 2021, p. 142), Saito cita Marx: “Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força humana de trabalho em sentido fisiológico, e graças a essa sua propriedade de trabalho humano igual ou abstrato ele gera o valor das mercadorias” (MARX, 2013, p. 137). Mas será que isso realmente significa que o trabalho abstrato é “um certo aspecto material da atividade humana, nesse caso o dispêndio puramente fisiológico do trabalho” (SAITO, 2021, p. 142)? Não é verdade que, como Marx demonstrou em sua introdução aos Grundrisse, a própria abstração é um fato social, o resultado de um processo social de abstração?

Desse modo, muito embora possa ter existido historicamente antes da categoria mais concreta, a categoria mais simples, em seu pleno desenvolvimento intensivo e extensivo, pode pertencer precisamente a uma forma de sociedade combinada, enquanto a categoria mais concreta estava plenamente desenvolvida em uma forma de sociedade menos desenvolvida. O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o “trabalho” é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstração (MARX, 2011, p. 81).

O mesmo não se aplica ao trabalho abstrato? Quando Marx escreve que “ao equiparar seus diferentes produtos uns aos outros na troca como valores”, os indivíduos “equiparam seus diferentes tipos de trabalho como trabalho humano”, ele não indica que os diferentes tipos de trabalho são equiparados somente por meio da troca no mercado? Somente em uma sociedade cujo metabolismo é regulado pela troca de mercadorias é que o “trabalho abstrato” é considerado como tal, para si mesmo. Em uma sociedade capitalista, sua “abstração” é um fato social: os trabalhadores recebem um salário por seu trabalho medido em sua abstração. Saito argumenta que o trabalho abstrato se refere ao que todo trabalho humano tem em comum, um gasto puramente fisiológico da energia humana no tempo. No entanto, isso não continua sendo uma “universalidade muda” ao invés de uma abstração real que marca o trabalho de forma imanente, transformando a lacuna entre o abstrato e o concreto em parte da própria identidade do trabalho?

O principal argumento de Saito para sua leitura é aquele no qual o trabalho abstrato é fisiológico “porque desempenha um papel social de maneira transistórica em qualquer sociedade” (SAITO, 2021, p. 140): a quantidade total de trabalho é, assim, inevitavelmente limitada a uma certa quantidade de tempo, por isso, sua alocação torna-se crucial para a reprodução da sociedade: o trabalho abstrato, dessa forma, opera em qualquer divisão social do trabalho. Mas será que o argumento se sustenta? Chama imediatamente a atenção o fato de que a definição de Saito do trabalho como gasto fisiológico é, em si, historicamente específica, enraizada no espaço anti-hegeliano do século XIX. Somente dentro desse espaço é possível conceber o “trabalho médio simples” como um padrão de nível zero ao qual todas as suas formas mais complexas podem ser reduzidas:

O trabalho mais complexo vale apenas como trabalho simples potenciado ou, antes, multiplicado, de modo que uma quantidade menor de trabalho complexo é igual a uma quantidade maior de trabalho simples. Que essa redução ocorre constantemente é algo mostrado pela experiência. Mesmo que uma mercadoria seja o produto do trabalho mais complexo, seu valor a equipara ao produto do trabalho mais simples e, desse modo, representa ele próprio uma quantidade determinada de trabalho simples. As diferentes proporções em que os diferentes tipos de trabalho são reduzidos ao trabalho simples como sua unidade de medida são determinadas por meio de um processo social que ocorre pelas costas dos produtores e lhes parecem, assim, ter sido legadas pela tradição (MARX, 2013, p. 122).

O principal termo enigmático é “experiência”. Como David Harvey (2010, p. 29) observou em seu comentário clássico, “Marx nunca explica que ’experiência’ ele tem em mente, o que torna essa passagem altamente controversa” [tradução nossa]. O mínimo que se pode acrescentar é que essa “experiência” deve ser concebida como se referindo a uma situação histórica específica: não apenas aquilo que aparece enquanto trabalho simples, mas a própria prática de reduzir o trabalho complexo ao simples é algo historicamente específico e não uma característica universal da produtividade humana, limitada não apenas ao capitalismo, mas ao capitalismo industrial clássico. Como demonstrou Anson Rabinbach, o trabalho abstrato se torna funcional [operative] na obra de Marx apenas no século XIX, durante o rompimento com Hegel. A proposição do motor termodinâmico como um exemplo de como opera a força de trabalho, que substitui o paradigma hegeliano do trabalho como o desdobramento expressivo da subjetividade humana, ainda era funcional nos textos do jovem Marx:

O motor termodinâmico passou a aparecer como o servidor de uma natureza poderosa, concebida como um reservatório de poder produtivo inalterado e inesgotável. O corpo trabalhador, a máquina a vapor e o cosmos passaram a estar ligados por uma cadeia única e ininterrupta, por uma energia indestrutível, onipresente no universo e capaz de mutação infinita, mas imutável e invariante. […] Esta descoberta também teve um efeito profundo e revolucionário no pensamento de Marx, em especial, sobre o modo de conceber o trabalho. Depois de 1859, Marx considerou cada vez mais a distinção entre trabalho concreto e abstrato com base na linguagem da força de trabalho, mais como um ato de conversão do que como um processo de geração. […] Dito de outra forma, Marx sobrepôs um modelo termodinâmico de trabalho ao modelo ontológico de trabalho que herdou de Hegel. Como resultado, para Marx a força de trabalho tornou-se quantificável e equivalente a todas as outras formas de força de trabalho (na natureza ou em máquinas). […] Marx tornou-se, assim, um ‘produtivista’. Deixou de considerar o trabalho simplesmente como um modo de atividade antropologicamente ‘paradigmático’. Em harmonia com a nova física, passou a ver a força de trabalho como uma magnitude abstrata (uma medida de tempo de trabalho) e uma força natural (um conjunto específico de equivalentes de energia localizados no corpo). (RABINBACH).

Dentro dessa estrutura conceitual da universalidade do trabalho abstrato, o comunismo não é apenas a unidade restaurada da humanidade e da natureza, mas, ao mesmo tempo, a realização de sua ruptura: no capitalismo, a produção social permanece “irracional”, não regulada pelo planejamento social (que caracteriza a humanidade) e, nesse sentido, pré-humana, parte da “história natural”. O problema subjacente aqui é filosófico: Saito não percebe essa ruptura porque aceita inquestionavelmente a definição de Marx (em O Capital ) sobre a especificidade humana: embora toda espécie viva esteja envolvida no metabolismo, na troca de matéria entre seu próprio organismo e seu ambiente natural, somente a espécie humana realiza esse metabolismo por meio do trabalho, no sentido de uma atividade conscientemente regulada. Aqui está a conhecida passagem do capítulo 5 [O processo de trabalho e o processo de valorização] de O Capital I:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade (MARX, 2013, p. 255–256).

A obviedade dessa definição não deve nos seduzir. A questão persiste: o planejamento consciente de um processo de trabalho exige algum tipo de distância do próprio imediatismo natural, e a forma desse imediatismo é a linguagem, portanto, não há trabalho em um sentido especificamente humano sem a linguagem. Isso implica muita coisa: a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação; ela forma o que Lacan chama de “grande outro”, a substância de nosso ser social, a densa rede social de regras e padrões escritos e não escritos.

Marx vai rápido demais em sua definição de trabalho, na medida em que ofusca ou ignora outra ruptura. Antes da passagem citada, ele escreve:

Não se trata, aqui, das primeiras formas instintivas, animalescas [tierartig], do trabalho. Um incomensurável intervalo de tempo separa o estágio em que o trabalhador se apresenta no mercado como vendedor de sua própria força de trabalho daquele em que o trabalho humano ainda não se desvencilhou de sua forma instintiva. Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem (MARX, 2013, p. 255).

A limitação compartilhada por Marx e Saito é clara aqui: ambos postulam uma linha progressiva da animalidade para os seres humanos, da atividade instintiva para a planejada/consciente, de modo que as fases pré-modernas são percebidas como “formas instintivas primitivas de trabalho que nos lembram o mero animal”. Entretanto, essas “formas instintivas primitivas de trabalho que nos lembram o mero animal” já envolvem uma ruptura radical com a natureza. A “ruptura metabólica” já está lá; o “metabolismo” das sociedades antigas está sempre fundamentado em um “grande outro” simbólico de trocas reguladas. Basta lembrar os antigos astecas e incas, cujo metabolismo social era regulado por um enorme aparato simbólico e cuja atividade culminava em rituais de sacrifício: temos que realizar sacrifícios humanos para que a circulação mais “natural” da natureza continue (para que o sol nasça novamente etc.), e o sacrifício é, por definição, uma interrupção do metabolismo suave. Em suma, a ruptura metabólica com a vida (animal) é a própria cultura, mesmo que – ou especialmente quando – ela se baseie nos ritmos naturais das estações, quando projeta significado na natureza. Quando, em seus escritos “antropológicos”, Freud indaga sobre as origens de tais rituais, sua resposta final é que a verdadeira fenda metabólica (o corte entre natureza e cultura) é a própria sexualidade. A sexualidade humana é imanentemente autossabotadora: ela envolve os paradoxos do desejo e impõe seu próprio ritmo violento aos ritmos “naturais”. O nome de Freud para esses paradoxos é, obviamente, a pulsão de morte[2].

Saito, portanto, avança rápido demais ao conceber o metabolismo transistórico da vida humana e natural como a base sobre a qual o capitalismo parasita. Há um terceiro termo entre esses dois, a saber, a própria ordem simbólica, o universo das ficções simbólicas, a substância simbólica de nossas vidas sociais, e o capitalismo não está apenas destruindo nosso habitat natural, mas está simultaneamente destruindo nossa substância simbólica compartilhada, o que Hegel chamou de Sitten. Essa ignorância da ordem simbólica também afeta a noção de comunismo de Marx. Quando, no final do capítulo I de O Capital, Marx emprega a matriz de quatro modos de produção/troca, ele começa e termina com o exemplo imaginado de Robinson Crusoé. E o que considero importante é que, no final, ele o recupera como o modelo para uma sociedade comunista transparente, sem inversões fetichistas: 

Como a economia política ama robinsonadas, lancemos um olhar sobre Robinson em sua ilha. Apesar de seu caráter modesto, ele tem diferentes necessidades a satisfazer e, por isso, tem de realizar trabalhos úteis de diferentes tipos, fazer ferramentas, fabricar móveis, domesticar lhamas, pescar, caçar etc. […] Apesar da variedade de suas funções produtivas, ele tem consciência de que elas são apenas diferentes formas de atividade do mesmo Robinson e, portanto, apenas diferentes formas de trabalho humano. […] Aqui, todas as relações entre Robinson e as coisas que formam sua riqueza, por ele mesmo criada, são tão simples que até mesmo o Sr. M. Wirth poderia compreendê-las sem maior esforço intelectual.

E, no entanto, nelas já estão contidas todas as determinações essenciais do valor. Saltemos, então, da iluminada ilha de Robinson para a sombria Idade Média europeia. Em vez do homem independente, aqui só encontramos homens dependentes – servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. A dependência pessoal caracteriza tanto as relações sociais da produção material quanto as esferas da vida erguidas sobre elas. Mas é justamente porque as relações pessoais de dependência constituem a base social dada que os trabalhos e seus produtos não precisam assumir uma forma fantástica distinta de sua realidade. […] Para a consideração do trabalho coletivo, isto é, imediatamente socializado, não precisamos remontar à sua forma natural e espontânea, que encontramos no limiar histórico de todos os povos civilizados.

Um exemplo mais próximo é o da indústria rural e patriarcal de uma família camponesa que, para seu próprio sustento, produz cereais, gado, fio, linho, peças de roupa etc. Essas coisas diversas se defrontam com a família como diferentes produtos de seu trabalho familiar, mas não umas com as outras como mercadorias. […] Aqui, no entanto, o dispêndio das forças individuais de trabalho, medido por sua duração, aparece desde o início como determinação social dos próprios trabalhos, uma vez que as forças de trabalho individuais atuam, desde o início, apenas como órgãos da força comum de trabalho da família.

Por fim, imaginemos uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção coletivos e que conscientemente despendem suas forças de trabalho individuais como uma única força social de trabalho. Todas as determinações do trabalho de Robinson reaparecem aqui, mas agora social, e não individualmente. Todos os produtos de Robinson eram seus produtos pessoais exclusivos e, por isso, imediatamente objetos de uso para ele. […] As relações sociais dos homens com seus trabalhos e seus produtos de trabalho permanecem aqui transparentemente simples, tanto na produção quanto na distribuição” (MARX, 2013, p. 151–153).

Essa série de quatro modos de produção – Robinson sozinho, dominação medieval, coletivos familiares, comunismo – é surpreendente e contraintuitiva. O primeiro mistério que salta aos olhos é: por que temos uma família onde esperaríamos o capitalismo como o modo que segue a dominação direta do período medieval? A família não deveria estar no início, como um modo que caracteriza as sociedades “primitivas” pré-classes? Em vez da família, Marx começa com o exemplo de Robinson (um único produtor). Por que Robinson é o ponto de partida quando (como Marx sabia muito bem) Robinson não é um ponto de partida histórico, mas um mito burguês? Não é porque Marx precisa começar com Robinson para que, em um círculo dialético (pseudo-)hegeliano, ele possa voltar a um Robinson coletivo, no final, como um modelo imaginado da sociedade comunista? O paralelo com Robinson permite que Marx imagine o comunismo como uma sociedade autotransparente, na qual as relações entre os indivíduos não são mediadas por um “grande outro” substancial e opaco. E nossa tarefa hoje é pensar o comunismo fora desse horizonte.

Referências

HARVEY, D. A companion to Marx’s Capital. Londres: Verso Books, 2010.

MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857–1858. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. (e-book).

MARX, K. O Capital: crítica da economia política, livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

RABINBACH, A. From emancipation to the science of work: the labor power dilemma. Texto não publicado.

SAITO, K. O Ecossocialismo de Karl Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021.


[1] Marxista esloveno e crítico cultural. Se tornou internacionalmente reconhecido depois da publicação do seu livro The sublime object of ideology, em 1989, pela Verso Books. Em português: Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Editora Zahar, 1992.

[2] Deveríamos até dar um passo adiante (ou melhor, para trás) aqui. Não se trata apenas de uma fenda metabólica que ocorre com a humanidade; uma fenda já opera na própria natureza pré-humana. Basta pensar em nossas principais fontes de energia, o petróleo e o carvão. Que tipo de fissura teve de acontecer para criar essas reservas? Portanto, temos que aceitar o paradoxo: se a humanidade chegar a um tipo de metabolismo harmonioso (troca com a natureza), ele será imposto pela humanidade como uma espécie de “segunda natureza”. Já circulam diferentes ideias de regulação de todo o metabolismo da Terra para evitar catástrofes ecológicas, e algumas delas envolvem intervenções radicais nos ciclos naturais (como pulverizar nossa atmosfera com produtos químicos, o que diminuiria a quantidade de raios solares que atingem a Terra).