A experiência analítica e seu futuro

Autor: Pierre Fougeyrollas

A nossa crítica seria incompleta se não focalizasse também a experiência analítica tal como é concebida por Lacan. No centro desse modo de interação, ele coloca o processo de transferência, o que não nos parece errado.

De fato, à Freud parecia que a manifestação da transferência constituía o ponto de inflexão da cura. Pois o paciente literalmente permanece um paciente enquanto o narcisismo neurótico o impede de investir efetivamente a sua libido num outro. O amor de transferência é justamente o renascimento de uma capacidade de investimento objetal que se dirige a um outro privilegiado: o analista. E, a partir daí, abre-se uma nova fase em que o nó neo-edipiano da transferência pode ser desatado, dando assim, gradualmente, à libido um mínimo de fluidez e margem de manobra.

Lacan aborda os problemas da transferência a partir de dois postulados inerentes à redução que ele próprio fez do inconsciente à função simbólica: primeiro, aquele da negação do afetivo como aspecto real dos processos psíquicos; segundo, aquele da negação da realidade da relação objetal devido ao caráter insuperavelmente narcísico de todo amor. É necessário, portanto, voltar brevemente a esses postulados e às suas implicações.

A negação da afetividade e a rejeição do termo afetivo (creio – diz ele – ser este um termo que deve ser absolutamente retirado de nossos saberes) denotam ambas o projeto lacaniano de desviar a psicanálise do estudo dos processos psíquicos para torná-la uma busca do “eu” que conhecemos. Mas, afinal, o afetivo é apenas uma forma de falar sobre o psiquismo na medida em que oferece uma opacidade à apreensão conceitual.

Entretanto, jogado por Lacan, com um muito barulho, pela porta da frente de sua escola, ele retorna sub-repticiamente pela janela. E, assim, o bom médico é obrigado a lançar um feitiço sobre o afetivo sob o nome de imaginário. Resta, no entanto, um inconveniente, a saber, que o afetivo tem como fonte, em Freud, o protopático, ou seja, a animalidade que se manifesta no ser humano, ao passo que, em Lacan, o imaginário é uma misteriosa alienação do simbólico que, por alguma razão, se perde ao tornar-se estranho a si mesmo.

A negação da relação de objeto denota o viés de nosso autor de se remeter, sistematicamente, às últimas concepções de Freud. Nestas, o pessimismo de sua velhice aparece para distorcer e desfigurar o formidável materialismo da psicanálise nascente. Ao que se deve responder que, no freudismo original, a libido é de fato marcada por um processo que vai do narcisismo infantil à relação objetal. É certo que uma parte do narcisismo corre o perigo de fazer com que a libido retorne, de modo patológico ao ego, algo que é inerente a essa relação.

Por outro lado, nas obras freudianas da velhice, é Eros quem, em sua luta interminável contra Tânatos, conquista apenas vitórias imaginárias, enquanto o automatismo da repetição realmente mantém o domínio do inorgânico sobre o orgânico, assim como da morte sobre a vida. E quem poderia contestar o caráter científico da libido como categoria que expressa a pulsão sexual, assim como o caráter ideológico das figuras de Eros e Tânatos?

Lacan considera a transferência por meio dos artifícios dogmáticos resultantes de seu sistema. Primeiro, lembra que “a transferência é um fenômeno no qual estão incluídos o sujeito e o psicanalista”. Depois, ele fornece, se assim se pode expressar, a palavra final sobre a questão:  a transferência é impensável a não ser que se comece pelo sujeito suposto saber “, isto é, pelo próprio analista. Trata-se de uma revisão surpreendente do freudismo.

De fato, nessa teoria da transferência está concentrada a essência do lacanismo: o inconsciente é o discurso do outro, o desejo do homem é o desejo do outro e, por fim, a transferência provém do desejo do analista. Não nos iludamos sobre o que se encontra aqui: assim como os estoicos fizeram uma distinção radical na humanidade, entre um punhado de sábios (estoicos, claro) e todo o resto, os tolos (stultorum turba), da mesma forma, Lacan opõe à massa, tida como idiota, aos que sabem, isto é, aos analistas. Vai à televisão e lá proclama: “Falo para aqueles que conhecem, aos não idiotas, a supostos analistas“.

Quando se recorda a constante modéstia do tom usual de Freud e os seus não menos constantes esforços de esclarecimento pedagógico em suas diversas palestras públicas, não se pode deixar de rir da palhaçada e dos embustes do epígono. Mas, neste campo, mais do que em qualquer outro, tudo tem um significado.

E, aqui, o significado consiste na convicção paranoica em virtude da qual Lacan e seus discípulos acreditam possuir, a respeito do ser humano e de sua condição, as únicas verdades até hoje formuladas. Dessa forma, eles se colocam como os “perfeitos” desse novo catarismo.[1]

Se, de fato, a função simbólica é o alfa e o ômega de todas as coisas, especialmente das coisas humanas, a única maneira de escapar da alienação por meio das fantasias é se descobrir como sujeito nessa função simbólica.

E Isso ele o diz em três etapas:

“Ensinei-vos a identificar o simbólico com a linguagem”;

“O problema todo consiste, portanto, na junção do simbólico e do imaginário na constituição da realidade”;

 “Na relação entre o imaginário e o real e na construção do mundo tal como daí resulta, tudo depende da situação do sujeito. E a situação do sujeito… caracteriza-se essencialmente por seu lugar no mundo simbólico, ou seja, no mundo da fala“.

Portanto, é óbvio que aqueles que ainda não foram analisados (lacanianamente) estão todos lutando com fantasias intransponíveis: o isso fala dentro deles, sem que eles saibam quem está falando e sobre o que falam. Somente os analisados que forem capazes de realizar – ou de começar a realizar – a junção do simbólico e do imaginário de modo a assim conhecer, na verdade, o real. O destino da humanidade, isto é, de sua desalienação possível, estaria, portanto, suspenso no desejo do analista lacaniano, em seu “discurso” que diz verdadeiramente o que é dito em cada um de nós inconscientemente.

Nessa fantasmagoria, a relação intelectual que se estabelece entre o analista e o outro reproduz a relação entre o senhor e o escravo da Fenomenologia do Espírito. Assim, o senhor acabará tendo que morrer (simbolicamente) para que o escravo deixe de ser escravo. Lacan sabe disso e diz:

Além da morte do mestre, ele terá que enfrentar a morte, como qualquer ser plenamente realizado. Terá de assumir, no sentido heideggeriano, o seu ser-para-morte. Eis que está num tempo que lhe foi emprestado. É disso que se trata de lhe mostrar. Esta é a função da imagem do mestre como tal…  a qual se consubstancia no analista”.

Eis, contudo, que a tarefa é bem difícil para os senhores do campo lacaniano; não é que eles o sabem e que o repitam para todos nós:

“O escravo demora um certo tempo para enxergar isso [ou seja, a sua condição de libertação]. Pois ele é feliz demais sendo escravo como todo mundo.”

Que psicanalistas, psiquiatras e psicólogos, por se encontrarem num impasse diante da atual crise da cultura burguesa, sobrevivam mediante a absorção dessas drogas subnietzschianas, isso é com eles.  Que intelectuais burgueses e pequeno-burgueses absorvam também tais drogas, evitando assim abrir os olhos para a morte de seu mundo social por meio da fantasia de uma morte antropológica e cósmica, que assim seja! Resta, então, a massa dos “tolos” e dos “escravos”, os quais todos somos e a quem nos dirigimos cotidianamente.

A sociedade capitalista atual está desenvolvendo casos de neuroses e psiconeuroses em quantidade e em intensidade crescentes. Embora sabendo que esse processo patogênico exacerbado só cessará com o fim desse sistema, é necessário, no entanto, agir sem demora, pelo menos pontual e setorialmente. Isso significa que é inevitável atualmente recorrer a práticas psicoterápicas, especialmente para tratar os muitos jovens.

Nesse campo de ação, o legado freudiano, a prática analítica, assim como a teoria sem a qual esta última não pode funcionar, são incomparáveis. Mas, agora, precisam ser retirados da rotina, do atoleiro fantasmagórico do lacanismo. É preciso, portanto, fazer um retorno real a Freud, ou seja, à parte científica e materialista que pode ser encontrada em suas obras. É preciso, também, excluir a extravagância ideológica que ele alimentou ou encorajou, especialmente no final de sua vida.

Em suma, a situação atual da psicanálise requer duas coisas: a) no plano teórico, é necessário um retorno ao materialismo freudiano, assim como uma articulação desse material com o materialismo histórico; b) no plano prático, é necessária uma abertura a formas de experiência mais amplas do que a do mero tratamento pessoal, uma vez que este permanece regulado e encerrado no protocolo freudiano.

Segundo esse protocolo, a vitória progressiva do paciente sobre as resistências que impedem o desvelamento dos conteúdos de seu inconsciente e sua transformação de paciente em agente, por meio da transferência e da superação, exigem que tudo ocorra no sofá do analista e sua presença. Mas essas demandas surgiram principalmente da impossibilidade de falar sobre assuntos sexuais em qualquer outro lugar que não fosse na sala do analista. Não estamos mais nesse ponto, agora que essas coisas estão invadindo a arena pública, abrindo o campo do que pode ser dito na família e na escola.

Parece-nos, portanto, que a experiência analítica poderia se distanciar do magistério exercido sobre ela pelo freudismo patenteado e daqueles que se dizem freudianos. Esse distanciamento poderia ocorrer, por um lado, por parte do próprio indivíduo que se entrega as formas de experiência autoanalíticas e, por outro, por parte da vida coletiva, dentro do qual poderiam se desenvolver formas de experiência analítica do tipo comunitário.

Dentro do próprio protocolo freudiano, tornou-se já suficientemente evidente que o paciente, ao tornar-se agente – repetimos – já está experimentando uma forma de autoanálise. Sabemos até onde a investigação de Karen Horney percorreu nesse caminho. Mas também sabemos que os praticantes do freudismo, ansiosos por preservar as suas fontes de renda, oporão a isso a impossibilidade de vencer a própria resistência e de efetivar a transferência sem a presença do analista.

Deve-se fazer aqui uma distinção entre o caso daqueles cujo sofrimento exige a procura de um terapeuta e o caso, muito mais geral, daqueles que procuram elucidar a relação entre sua consciência e sua inconsciência. Afinal, o próprio ensinamento de Lacan não nos convida a entrar nessa ordem de considerações que ultrapassa o campo dos casos patológicos ou dos casos vividos como tais?

Feita essa distinção – e havendo reservado aos terapeutas o domínio daqueles casos em que são hoje indispensáveis –, percebe-se que a mudança de costumes e representações relativas à vida sexual torna o projeto de autoanálise muito menos inviável para um número crescente de indivíduos do que na época de Karen Horney.

Além disso, a introdução da educação sexual, que não se limitaria às referências fisiológicas e às descrições de órgãos, mas disseminaria os conceitos fundamentais do freudismo, constituiria condição essencial para o desempenho de atividades autoanalíticas. Desse ponto de vista, por que os psicanalistas não deveriam se dedicar a um ensino metódico do freudismo nas escolas?

Em relação a tais desenvolvimentos pedagógicos, é fácil imaginar que as relações interindividuais possam abarcar, de forma cada vez mais deliberada, as preocupações psicanalíticas. Em suma, o desvelamento dos conteúdos do inconsciente não pode permanecer por muito mais tempo como ato de um indivíduo isolado na presença de um analista. Por mais que aquilo que está ocorrendo, especialmente entre as gerações mais jovens, na direção de novas formas de vida sexual, implicam e anunciam uma crescente consciência da relação entre os processos psicossexuais e os processos sócio-históricos.

Enquanto a experiência analítica continuar preservada aos cenáculos e aos consultórios, subservientes às leis da economia capitalista, apenas alguns poucos privilegiados poderão se beneficiar do tratamento inerente a esse tipo cuidado. Por outro lado, uma massa crescente de neuróticos estará condenada à angústia, ao desespero e à morte, condições que se mostram intransponíveis devido à insuficiência de psicoterapeutas e de equipamentos psiquiátricos, algo muito peculiar de nossas sociedades.

De nossa parte, não acreditamos que o capitalismo, já agora em processo de decadência, possa, mesmo que muitos o queiram, atender às crescentes necessidades psiquiátricas. Neste ponto, como em outros, a satisfação das necessidades básicas requer a destruição do modo de produção capitalista por meio da revolução proletária. E, de modo ainda mais fundamental, a opacidade que afeta os processos psicossexuais não pode ser eliminada enquanto duram as relações capitalistas de produção. Eis que são as fontes atuais da ideologia burguesa já que tendem precisamente a espalhar uma opacidade específica sobre todos os fatos humanos.

O fato é que psicanalistas, psiquiatras e psicólogos, assim como aqueles que são chamados de “assistentes sociais”, inseridos que estão nas lutas de classes, não podem esperar esse resultado para se dedicar às suas tarefas médicas ou paramédicas. Desse ponto de vista, é necessário que contribuam para a orientação científica das atividades em questão. A abertura da psicanálise, ou seja, o rompimento dos monopólios que a sufocam, parece fazer parte dessa perspectiva.

Nesse nível, o lacanismo nada mais é do que um bloqueio. Eis que ele usurpa a herança de Freud, desviando-a para especulações obscurantistas, uma boa parte daqueles que poderiam tomar para si o enfrentamento de tais problemas candentes. Quais sejam eles senão os graves danos causados à psique de muitos indivíduos pela exploração capitalista, por todas as formas de opressão e de repressão que a acompanham e que são necessárias para preservá-la.

Entre os empreendimentos lucrativos que visam supostamente a adaptação dos indivíduos à sociedade envolvente, os quais são praticados por analistas americanos ou de inspiração americana, e a regressão lacaniana, uma espécie de nova Idade Média especulativa, existe um caminho para a psicanálise. E ele consiste em retomar o espírito original de Freud no interesse daqueles que, doentes ou não, precisam urgentemente de sua sabedoria.


[1] N. T.: Eis o que diz o dicionário: “O catarismo foi uma doutrina herética surgida na França, no século XI, que se espalhou por outras partes da Europa e sofreu grande perseguição da Igreja Católica. “O catarismo foi a maior heresia difundida em algumas regiões da Europa a partir do século XII. Essa heresia foi muito forte no Sul da França e Norte da Itália, principalmente entre as camadas populares urbanas da sociedade medieval. A difusão do catarismo por essas regiões foi tão grande que a Igreja convocou uma Cruzada para perseguir seus seguidores e interromper o crescimento da heresia. Os cátaros também são conhecidos como Albigenses em referência à cidade francesa de Albi, um dos principais centros de difusão do catarismo.”