Autor: Ian Parker – Blogue Psychopolitics

O livro Socialisms: revolutions betrayed, mislaid and unmade (Socialismos: Revoluções traídas, perdidas e desfeitas) não se preocupa com a psicanálise. Ele contém uma descrição e uma análise política de oito tentativas fracassadas de construir o socialismo neste mundo capitalista tão hostil à auto-organização coletiva. Mas esses fracassos levantam questões sobre o lugar da psicanálise no mundo, tanto como prática terapêutica quanto como forma de crítica política.
Em primeiro lugar, há a afirmação de que a psicanálise oferece um espaço social para a “livre associação”, algo que pode ameaçar regimes que se baseiam na vigilância do povo. Isso às vezes se estende até mesmo à ideia de que o etos político da psicanálise leva ao tipo de “livre associação” que esperamos e almejamos em uma sociedade socialista. Tal etos ameaça regimes que se dizem socialistas, mas não são, que traíram princípios fundamentais da política marxista em que, como disse Lênin, é de se esperar e exigir que haja debate, processos governamentais abertos, os quais seriam mil vezes mais democráticos do que nos regimes parlamentares burgueses.
A questão aqui é saber se a psicanálise como tal – e não a ‘livre associação’ – alimenta o direito de falar livremente dentro da clínica com um programa político. Há muitos regimes que realmente parecem acreditar que é esse o caso e se opõem, por isso mesmo, à psicanálise.
Assim, no caso da URSS, houve um primeiro florescimento da psicanálise na década de 1920, com psicólogos proeminentes como Lev Vygotsky e Alexander Luria que participaram da Sociedade Psicanalítica Russa para depois deixarem-na quando Stalin apertou seu controle sobre o aparelho de estado russo. A psicanálise passou a ser vista então como uma ameaça. Li as atas da Sociedade Psicanalítica Russa assinadas por Luria, assim como uma nota manuscrita de Luria e Vigotski quando visitei Izhevsk. Ficou claro para mim que, com o fim do regime czarista, havia novas possibilidades, novas aberturas para a psicanálise, mas dentro de limites.
À medida que o regime passou da gestão estatal burocrática para o capitalismo até o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, vimos, de fato, uma hostilidade ainda maior ao que eram vistos como formas aberrantes e decadentes de sexualidade “ocidental” do que sob Stalin. Stalin proibiu a homossexualidade, mas o regime de Putin a demoniza; as discussões sobre a teoria queer em um congresso psicanalítico de Izhevsk que participei foram muito difíceis.
Há outro indício disso no caso de Cuba, onde, durante minha segunda visita, a qual descrevo no livro, participei de um congresso de psicologia que incluiu uma sessão dedicada ao trabalho de Fernando González Rey, que foi chefe da Sociedade Cubana de Psicologia e vice-reitor da Universidade de Havana por muitos anos. González Rey se desentendeu com Castro durante uma visita ao Brasil quando sua esposa precisava de tratamento médico e ele desafiou a ordem de Castro de que ele deveria retornar a Havana, e por muitos anos depois ele foi persona non grata na psicologia cubana, mas o congresso foi um sinal de que as coisas estavam se abrindo novamente. Note-se, ainda, que González Rey foi, durante seu tempo à frente do departamento de psicologia e depois vice-reitor da Universidade de Havana, uma figura-chave na intermediação de encontros inusitados que trouxeram psicanalistas, tanto da Associação Psicanalítica Internacional quanto de grupos lacanianos, de fora do país.
Acho que poderíamos tomar isso como um sinal de que Cuba, ao longo dos anos, tem estado mais aberta à dissidência. Não completamente; sempre esteve sob ameaça dos EUA e teve boas razões para desconfiar de “dissidentes” que trabalham para potências estrangeiras. Mas se mostram relativamente mais abertos do que a União Soviética.
Encontrei-me com alguns jovens acadêmicos cubanos, não psicólogos, e fomos passear por Havana. No caminho, em uma livraria perto da Universidade havia um livrinho, publicado em Cuba, de escritos do psicanalista lacaniano Jacques-Alain Miller. Talvez isso seja um sinal de relativa abertura em um regime que rompeu com o capitalismo, mas ainda está sujeito a ele, que coletivizou indústrias-chave, mas que agora teve que relaxar as restrições, abandonando recentemente a “moeda dupla” que separava turistas e empresários estrangeiros.
Além da repressão à psicanálise como tal, que era mais feroz na União Soviética e nos Estados satélites sob seu controle, também houve algum relaxamento à medida que o domínio de Moscou também foi diminuído. No caso da Sérvia, por exemplo, a ruptura entre Tito e Stalin foi, talvez, mais significativa do que eu fiz parecer na minha descrição no livro. Enfatizei mais a continuidade entre Tito e Milošević. Noto, ademais, que o regime atual está bem encaminhado para abraçar o neoliberalismo de pleno direito, do que focar nos aspectos positivos de Tito.
Devemos lembrar que a Iugoslávia, da qual a Sérvia era um bloco cultural dominante, era também um lugar de efervescência intelectual, que incluía mais abertura à psicanálise. Os escritos de Wilhelm Reich foram traduzidos muito cedo. O meu principal guia e amigo em Belgrado durante minha visita foi um dos que traduziram Reich quando ainda Sérvia era, como ela ainda vê, “socialista”. Slavoj Žižek escreveu uma longa introdução a uma tradução croata do livro de Christopher Lasch, A Cultura do Narcisismo. Claro, a psicanálise foi também um recurso para o movimento contracultural na Eslovênia.
Há formações psicanalíticas nesses países que agora se tornaram sociedades capitalistas, como a China. Discuti isso com amigos que estudaram no Ocidente e depois voltaram para a China – durante esse tempo, a psicanálise floresceu. Os treinamentos estão, no entanto, muitas vezes ligados a instituições médicas, que é onde o treinamento influenciados por organizações ocidentais é mais frequentemente.
Quando discuti brevemente a psicanálise na Coreia do Norte, aliás, fui recebido com a mais vazia das caras. Tentativas fúteis de me envolver com o que eu estava dizendo – o que era raro porque aqueles designados para lidar com ocidentais mudam muito rapidamente de assunto quando a conversa toca em coisas que estão fora do quadro da turnê – indicaram que eles não tinham a menor ideia do que eu estava falando. Não havia livros psicanalíticos nas bibliotecas em que fomos autorizados a entrar em Pyongyang.
Aqui, novamente, precisamos refletir criticamente sobre a afirmação de que a existência da psicanálise em uma sociedade é um indício de que a sociedade é ‘mais livre’. A afirmação de que a psicanálise só pode realmente funcionar em uma sociedade democrática, e que os dois – o reino da prática terapêutica na clínica e o reino do debate político – se espelham, é muitas vezes assumida como sendo o caso por psicanalistas liberais e até mesmo alguns radicais, mas não tenho tanta certeza de que seja verdade.
Basta considerar, por exemplo, o caso da Hungria, onde a psicanálise floresceu sob o regime de Horthy, antes da incorporação do país ao “Bloco de Leste” e ao controle soviético, ou da África do Sul, onde as associações psicanalíticas operaram durante os anos do apartheid. O outro lado disso é a Argentina, não de longe um país socialista, onde é verdade que alguns psicanalistas, como Marie Langer, tiveram que deixar o país durante a ditadura, mas isso não significou de forma alguma o fim da psicanálise. Outros psicanalistas intervieram para ocupar os cargos dos que deixaram o país, e a prática, talvez despolitizada, mesmo assim sobreviveu.
Há duas outras questões intimamente relacionadas com isso. Uma delas é que a psicanálise é filha do Iluminismo ocidental e, por mais contraditória que seja, e talvez justamente por ser contraditória, difícil de definir, fazer sentido, alguns regimes desconfiam dela. Ouvi em vários lugares a afirmação de que a psicanálise é ‘ocidental’ – e suspeita por isso. A outra questão, que já sinalizei brevemente, é a ligação com o sexo não normativo, bem como a ligação com o verdadeiro sexo, que é sempre necessariamente de certa forma “não-normativo”. Eu descrevo no livro os ataques feitos aos veganos na Geórgia; lá, os ativistas conservadores pró-família lá são tão hostis ao feminismo quanto à psicanálise, vendo os dois conjuntos de ideias como equivalentes.
É preciso discutir não apenas se a psicanálise é ou não “radical” ou, por outro lado, mesmo liberal, sobre a necessidade de permitir a “livre associação” – tudo isso não é ruim; e, para ser honesto, há algumas questões conceituais mais profundas sobre a inter-relação entre formas de socialismo e visões psicanalíticas do que vem a ser a subjetividade humana.
Esses dois polos estão conectados, é claro, através do feminismo, particularmente o feminismo socialista que afirma que o “pessoal é político”. É por isso que o feminismo tem sido uma ponte absolutamente necessária e inevitável para muitos ativistas e analistas entre o marxismo e a psicanálise.
Essa é uma das razões, aliás, pelas quais o chamado “freudo-marxismo” convencional e a vertente de pesquisa que trouxe de volta as queixas pró-família, tal como a de Christopher Lasch, fracassaram. Eis que acabaram caindo em becos sem saída conservadores: a hostilidade ao feminismo bloqueia, de algum modo, as possíveis conexões entre a ideia de socialismo e a prática psicanalítica.
Um obstáculo para ligar os dois campos – ou para distorcê-los – está nas reivindicações fundamentais sobre a “natureza humana” e na espiral de reivindicações ideológicas sobre o que o ser humano não é capaz de fazer por causa deste ou daquele aspecto de sua natureza. É aqui que a operação da psicanálise, tomada como uma espécie de visão de mundo, se torna tão reacionária.
Há uma questão-chave sobre o “socialismo” aqui, e a maneira como os regimes que discuto no livro muitas vezes transformam o marxismo em uma visão de mundo. Isso ficou claro no caso da China, onde um aparatchik do Partido Comunista me disse que o marxismo era sua “fé”, enfatizando então que era por isso que os seus alunos precisavam aprender sobre ele numa forma algo dogmática. No caso da Coreia do Norte, aliás, esse sistema de crenças se transforma em algo mais místico ainda, na ideia “Juche”.
Uma das limitações político-culturais dos “socialismos” que discuto é justamente que eles eram governados por um sistema de crenças que funcionava como se fosse uma fé. Talvez eu seja liberal demais aqui. Entretanto, é justamente por ser marxista que não vejo o “socialismo” como sendo definido por seu sistema de crenças, mas pela capacidade criativa de ideias e práticas contraditórias de trabalhar em conjunto. Ele precisa tratar a “livre associação” como um objetivo. Da mesma forma, é por ser psicanalista que sou avesso a que a psicanálise seja transformada numa “fé”. Não gosto de que termo como “divisão”, “projeção”, “agressividade” e “gozo” sejam usados para dizer o que não podemos fazer como seres humanos, sendo então usados para explicar de um modo místico porque o socialismo fracassou.
Um outro obstáculo está em suposições comuns sobre subjetividade e mudança que às vezes são realmente compartilhadas por psicanalistas e pela esquerda. Esse é o velho modelo hidráulico do inconsciente tão popular nas representações psicologizadas da psicanálise. Sabe-se que ele ainda é tomado como correto por alguns psicanalistas. Essa ideia também entrou na consciência popular como modelo implícito de emergência da resistência e da ação política.
O marxismo é muito claro sobre isso. Em oposição a esse ponto, argumento que as contradições do capitalismo são uma função da natureza específica de seu funcionamento político-econômico; ademais, a classe trabalhadora se constitui como uma força que derrubará o capitalismo. Ou seja, a dialética não postula a força da sublevação e da derrubada como primária do indivíduo social, mas como função do sistema.
O capitalismo atua para distorcer o marxismo, de modo que mesmo os socialistas muitas vezes argumentam usando tropos retóricos e até narrativas históricas que são antitéticas a ele. As teorias da conspiração são um exemplo disso. Sabe-se bem que o capitalismo distorce muito eficientemente também a psicanálise, fazendo, por exemplo, parecer que ela mexe com as profundezas instintivas do indivíduo. Supõem-se, assim, que exacerba esses instintos especialmente quando os indivíduos se associam uns aos outros e se transformam em turbas.
Além de incluir um contexto histórico-político detalhado para os regimes que descrevo e reportagens para tecer uma narrativa sobre a forma interna dos regimes, o livro trata de representações e autorrepresentações de diferentes formas de socialismo. Começo o livro com uma introdução que aponta que Marx nunca ofereceu um projeto para o socialismo, e os marxistas geralmente tiveram o cuidado de não especificar exatamente como seria o comunismo.
Os melhores relatos mais próximos do que temos agora ainda estão na veia da ficção especulativa, na obra de escritoras como Ursula Le Guin. Em outras palavras, os ativistas políticos marxistas não apresentam, como sugerem alguns relatos conservadores psicanalíticos, um “ideal” com o qual tentam influenciar as pessoas do mundo real.
Temos problemas reais quando estamos tentando articular relatos psicanalíticos e socialistas da sociedade, porque o domínio da psicanálise é a clínica, não a sociedade. As tentativas dos psicanalistas de generalizar sua teoria favorita dos processos psíquicos internos para a sociedade geralmente tropeçam em outro problema.
A partir de Freud, as análises psicanalíticas da sociedade são sempre feitas a partir de uma posição política particular. Normalmente, entretanto, essa posição política é renegada. Os psicanalistas muitas vezes usam sua teoria de modo a fingir que estão simplesmente descrevendo a realidade de forma neutra. Os psicanalistas venezuelanos muitas vezes expressaram oposição ao regime de lá porque querem defender sua prática como algo privado, disponível apenas para pagamento, uma posição política e não clínica.
Muitas das representações do socialismo são, no entanto, influenciadas por alguma versão ou outra da teoria psicanalítica. Há duas razões para isso.
Uma das razões é que as ideias de Freud têm sido um ponto de apoio da mídia popular há mais de um século, variando desde a referência, o uso e a representação dessas ideias no cinema de Hollywood até os motivos que estruturam os romances, seja no conhecimento de piscadelas para o leitor em romances de sobrancelha ou em retratos simplistas de motivos sexuais subjacentes na “pulp fiction”.
A outra razão é que o próprio Freud pegou e reciclou muitas ideias populares sobre a mente e trabalhou nelas para desenvolver a psicanálise. Isso é especialmente evidente em seus relatos sobre processos sociais e no trabalho das gerações seguintes de psicanalistas. Especialmente nas formas de psicanálise que buscam adaptar sua prática e suas análises à sociedade, em vez de desafiá-la criativamente. Há, então, consequências terríveis para as imagens do socialismo na psicanálise.
Tomemos, por exemplo, imagens da multidão. Sim, é verdade que Freud releu e retrabalhou as diatribes oitocentistas de Le Bon contra “a turba”. Assim, temos no livro “Psicologia de Grupo e a Análise do Ego” de Freud um relato mais sofisticado do papel do ego-ideal na forma de um líder ou de uma ideia de liderança estruturando a identificação e a idealização em grupos. Mas Freud também levou para a psicanálise a partir de Le Bon uma desconfiança da ação coletiva como propensa a ser patológica, desconfiança que refletia a própria posição política de Freud, preocupação com as coisas saindo do controle, preocupação com forças irracionais sendo desencadeadas.
Então, agora, quando olhamos para as representações do socialismo, encontramos algumas dessas mesmas ideias em ação; criam-se assim peças com diagnósticos psicanalíticos do socialismo como um problema. No caso da recente série da Netflix “Pousando no amor”, que é sobre uma jovem moça sul-coreana, muito rica, que desembarca por engano após uma tempestade na zona desmilitarizada e se apaixona por um soldado da elite da RPDC.
Vê-se imediatamente nessa série que elementos quase psicanalíticos estão estruturando a narrativa. De acordo com esta série de televisão sul-coreana, o regime ditatorial ao norte da fronteira está repleto de corrupção e crime; há criminosos e gangues que fazem motins sem qualquer controle das autoridades. Pode não haver psicanálise na Coreia do Norte, mas há muito dela no Sul no trabalho acadêmico e na cultura popular.
A série zomba da elite sul-coreana, sim, com imagens de católicos ricos pedindo a Deus que interceda, mas o regime norte-coreano é apresentado, representado como perigoso justamente porque não existe uma estrutura social de confiança. É como se a Coreia do Sul se organizasse em torno da figura do policial suíço de que fala Freud – um superego rigoroso, mas justo, a ser instalado no final da análise – e a Coreia do Norte, ao contrário, fosse governada pelo policial corrupto russo, um superego que pede suborno e que depois licencia comportamentos autodestrutivos e antissociais. Há cenas de norte-coreanos sendo ensinados sobre como articular seus sentimentos, da maneira que psicanalistas interessados em “mentalidade psicológica” aprovariam. A série foi filmada na Coreia do Sul, na Suíça e na Mongólia – não na Coreia do Norte.
O que pretendo fazer no livro é mostrar como e por que cada forma de “socialismo” falhou, como foi traída, mal colocada ou desfeita, examinando as circunstâncias particulares em que as revoluções ocorreram e o contexto histórico-mundial em que elas lutaram para encontrar seu caminho. Precisamos de análises detalhadas dos socialismos existentes e análises das formas de psicanálise também, mostrando como elas se cruzam, como o fracasso de cada uma se reforça e, assim, trabalhando como o sucesso de cada uma pode fornecer recursos para a outra.
Em suma, o livro como um todo faz parte de um projeto para colocar a psicopolítica na agenda dos movimentos de libertação.
Você precisa fazer login para comentar.