O colapso da modernização trinta anos depois

Publica-se hoje um importante artigo de Anselm Jappe e Johannes Vogele sobre a corrente da “critica do valor”. Ele reavalia, trinta anos, depois o livro O colapso da modernidade de Robert Kurz, cuja tradução para o português foi publicada logo após que saiu em alemão, na própria Alemanha (Paz e Terra, 1992). Este artigo é relevante porque o livro de Kurz suscitou muitos debates no Brasil. Veio à luz cinco anos após o fim da ditadura militar, num momento em se passava a considerar a economia de mercado e a democracia liberal como o fim da história.  

O autor desse blog considera que a tese central de Kurz, apresentada no começo dos anos 1900 justamente quando o “socialismo real” na URSS entrou em derrocada, revelou-se correta. Eis que, então, afirmou que o fim da URSS era apenas uma etapa do colapso mundial da sociedade mercantil, que havia começado já nos anos 1980. Para ele, os países em que vigorava de fato o “capitalismo de Estado” não eram mais do que uma parte menor do sistema global, então, em processo final de unificação. Ele previu que o capitalismo no Ocidente, ao invés de novos anos dourados, experimentaria uma época de declínio e que ele evolveria doravante sob constantes crises.

Apesar desse acerto, o autor desse blog tem várias discordância com a corrente da “crítica do valor”. Eis algumas delas: não parece haver evidência conclusiva que a massa global de mais-valia vem se retraindo no período neoliberal (1980 em diante); ele não acolhe a tese do duplo Marx, um deles esotérico que pensou a acumulação de capital como um processo destruidor do homem e da natureza e, assim, autodestruidor, e um outro exotérico que conferiu um papel histórico revolucionário à classe operária do seu tempo; não aceita a tese de que a dialética está sempre comprometida como uma teleologia da história; não admite que trabalho abstrato seja o mesmo que trabalho fisiológico etc.

De qualquer modo, segue o escrito dos dois autores nomeados.

Prefácio à edição francesa de O colapso da modernização. Do colapso do socialismo de caserna à crise do mercado mundial[1] de Robert Kurz.

Anselm Jappe e Johannes Vogele

Este livro de Kurz foi publicado em setembro de 1991, na Alemanha. Imediatamente teve um grande eco. O Muro de Berlim havia caído há quase dois anos e a Alemanha havia sido “reunificada” há quase um ano, mas a União Soviética, em convulsões, não havia sido ainda formalmente dissolvida. A redação do Colapso da modernização coincide, portanto, com esse período tão rico em mudanças.

Hans Magnus Enzensberger, importante intelectual alemão dotado de grande intuição, publicou o livro em sua prestigiosa coleção Die andere Bibliothek, por meio da editora Eichborn. O rápido desencanto na Alemanha com as esperanças de novos milagres econômicos foi a causa provável do fato de que a circulação deste livro atingiu rapidamente 20 mil exemplares; ele foi descrito pelo influente jornal Frankfurter Rundschau como “a publicação recente mais discutida” na Alemanha. Ele foi rapidamente traduzido no Brasil, onde despertou uma paixão pela crítica de valor.

Trinta anos após sua publicação, ele pode ser relido sob vários pontos de vista. Encontramos aí a análise do estado do mundo em um momento crucial, uma análise que ainda surpreende por sua perspicácia e sua audácia. Seu tema principal é o colapso do “socialismo real” nos países do Oriente – um acontecimento que, para grande parte dos leitores de hoje, ocorreu antes de seu nascimento ou mesmo de sua infância: uma história distante, portanto. O colapso do bloco soviético foi visto em toda parte – à direita, à esquerda e até mesmo entre muitos de seus antigos oponentes de extrema esquerda – como prova da vitória final do modelo ocidental e, portanto, da democracia e da economia capitalista – algo com que se pode alegrar, mas que às vezes leva a se desculpar.

Robert Kurz, ao contrário, não só deu uma explicação marxista da inevitável falência do “socialismo real” muito diferente das análises propostas pela esquerda, mas também afirmou com ousadia que o fim da URSS foi apenas uma etapa colapso mundial da sociedade mercantil, da qual os países “socialistas” eram apenas um ramo menor. Notamos hoje a correção das opiniões de Kurz quando anunciou que o fim da URSS não abriria um período de prosperidade global e paz universal, ou mesmo um feliz “fim da história”, mas antes significaria a entrada em uma era mais conturbada do que antes: o colapso global do sistema capitalista.

Claro, nem todas as previsões de Kurz se mostraram corretas e o colapso não veio tão rapidamente quanto ele esperava. No entanto, esses erros de avaliação devem, em retrospecto, pesar pouco, dada a correção de sua tese essencial. O capitalismo, seja de estado ou de mercado, enredara-se em uma crise irreversível em consequência do esgotamento de seu mecanismo básico: a transformação do trabalho em valor e, depois, em acumulação de capital por meio de um processo sem fim, tautológico.

Este livro é também um documento importante sobre a história da crítica do valor – é, ao mesmo tempo, a sua certidão de nascimento, assim como um bom resumo de algumas de suas teses centrais. O jornal Marxistische Kritik foi fundado em 1987 em Nuremberg, na Alemanha, por um pequeno círculo de pessoas sem laços acadêmicos ou institucionais, que vieram de diferentes correntes da esquerda radical marxista. A princípio manteve um caráter bastante oculto, manteve-se assim mesmo depois de mudar seu nome para Krisis – o que não impediu que ali se realizassem trabalhos teóricos fundamentais, que incluíam, em particular, a ruptura com a doxa marxista sobre o trabalho e a luta de classes, sempre em nome de um retorno à obra do próprio Marx.

Uma reformulação da crítica marxista da economia estava emergindo ali e esta era uma crítica categorial, uma crítica das categorias básicas, negativas e destrutivas, das sociedades capitalistas – trabalho, valor, dinheiro, mercadoria – e uma nova crítica do fetichismo. Foi nesse contexto que Robert Kurz, o autor mais prolífico do grupo, se propôs a escrever um livro inteiro sobre a mudança de época, em um estilo mais acessível do que os artigos que publicou na Krisis. Assim nasceu o livro O colapso da modernização.

Sobre as bases de uma reformulação da crítica marxista da economia política, o livro ofereceu uma contra-história da introdução do capitalismo nas regiões periféricas, especialmente no século XX. A análise de Kurz da revolução de outubro de 1917 e, em particular, do bloco soviético, mostrou-se muito diferente de qualquer análise produzida pela esquerda radical ao longo de sua existência. Como disse Kurz, em 2006, em uma entrevista intitulada O colapso da modernização 15 anos depois[2], tais análises dificilmente desafiaram o alegado caráter socialista e pós-capitalista da União Soviética. Os poucos teóricos que falavam de “capitalismo de Estado” não iam além de um conceito sociológico e redutor de “burocratização”.

Identificando o capitalismo, superficialmente, apenas com o domínio das classes burguesas, eles tematizaram a crítica do “mais-valor” de um modo apenas sociológico, ou seja, focando só a sua apropriação pela “classe capitalista”, o que era feito também na URSS pelo “partido-Estado”. Nunca analisaram, de modo mais fundamental, a forma-valor funcionando em loop e de modo fetichista, constituindo assim a substância do capital como trabalho abstrato. Nunca analisaram a instauração do mundo do capital nas sociedades do bloco soviético por meio de uma “acumulação primitiva”. Denunciaram, apenas, a sua “distribuição desigual” em benefício não mais da classe burguesa, mas doravante de uma nova classe burocrática. Ao contrário de um Trotsky que não tinha um conceito real de capitalismo, a burocracia era, aos olhos de Kurz, uma consequência – e não a causa – da repressão estatal destinada a generalizar o trabalho abstrato em sociedades refratárias.

Ainda de modo mais fundamental, de acordo com Kurz, a diferença entre a economia planejada e a economia de mercado era apenas relativa, já que a sua base comum, a saber, o “trabalho abstrato”, pesava muito mais. Essa acumulação de trabalho abstrato nunca visa a produção de valores de uso, mas apenas a apropriação de mais-valor, um expansão do dinheiro como “fim tautológico”, para além de todas as necessidades reais. O capitalismo constituiu-se a partir do século XVI (período de “acumulação primitiva”) por meio de fases alternadas entre intervencionismo estatal, muitas vezes brutal, e autoregulação do mercado. Uma vez que os primeiros capitalismos nacionais se estabeleceram, tornou-se cada vez mais difícil para os recém-chegados entrar no mercado mundial.

A revolução russa de 1917, independentemente da vontade de seus dirigentes, não teve – e não poderia ter, segundo Kurz – como horizonte o “comunismo”, mas apenas uma “modernização recuperadora”. Tratou-se sempre de uma versão acelerada da constituição das formas sociais básicas do capitalismo, em particular por meio da reorganização das velhas estruturas sociais pré-modernas com o fim de impor a socialização dos indivíduos por meio do trabalho assalariado.

Não foi por acaso que Lenin viu a economia alemã da Primeira Guerra Mundial – e mais especificamente o serviço postal alemão – como um modelo a ser seguido. As categorias básicas da produção capitalista, como valor, dinheiro, salários, preços, nunca foram abolidas na URSS; pelo contrário, assistimos a uma repetição acelerada e, por isso, ainda mais brutal, da “acumulação primitiva” e das revoluções burguesas ocidentais. 

Quando, nos anos 1960 e 1970, a consciência ocidental encheu-se de horror frente ao “totalitarismo”, ela realmente descobriu apenas uma imagem concentrada do seu próprio passado. Não se tratava de fazer uma revolução para superar o capitalismo, como proclamara a ideologia, mas, pelo contrário, de transformar uma sociedade camponesa pré-moderna em uma sociedade capitalista. Milhões de pessoas foram repressivamente integradas ao sistema do trabalho abstrato. Depois da Rússia e seus satélites europeus, muitos países no sul e no leste do mundo, os quais haviam ficado para trás na ascensão global do capitalismo, também tentaram conquistar a sua “modernização recuperadora” no momento em que obtiveram a sua independência.

Embora a URSS tenha conseguido, no período stalinista, reproduzir a acumulação extensiva do período inicial do capitalismo, ela se mostrou incapaz de passar para os estágios posteriores, já que a acumulação tinha agora de ser intensiva – e esse problema se repetiu com os novos países independentes das décadas de 1950 e 1960. A relativa paralização da dinâmica interna da criação de valor reforçou ao absurdo os seus aspectos negativos; ocorreu assim um enorme distanciamento da criação de valor em relação às necessidades. Foi assim, que depois de alguns anos, a URSS ficou para trás novamente. Ela pôde resistir à competição internacional por mais algumas décadas somente graças à autarquia econômica.

Contrariando a crença então difundida de que bastava substituir um modelo econômico “errôneo” – o socialismo – por um modelo “justo” – a economia de mercado – para alcançar a mesma prosperidade em todos os espaços econômicos, Kurz afirmou que a economia de mercado não é extensível à vontade: ao contrário, ela se afigura como uma besta condenada a se autodevorar. Qualquer aumento de produtividade nos centros mais avançados invalida a produção de valor nos países que não conseguem manter o mesmo ritmo; do mesmo modo, nenhuma autarquia econômica é verdadeiramente possível. Nessa corrida, primeiro as economias do terceiro mundo entraram em colapso, depois as do Oriente “socialistas”, enquanto uma luta final passou a ocorrer entre os próprios países ocidentais.

Na encruzilhada dessa época, Kurz reafirmou fortemente a teoria marxista da crise. É porque a viu como a ferramenta mais adequada para compreender a realidade em transformação. Ele vai, assim, reapresentar um Marx esquecido, àquele da crise fundamental. Um Marx que, desde a teoria do colapso de Henryk Grossmann ou de Rosa Luxemburg, tinha sido reprimido e até mesmo demonizado.[3]

Kurz descreveu, então, em detalhes as aporias que solapavam as próprias bases das duas novas “locomotivas” da economia mundial durante as décadas de 1980 e 1990, Alemanha e Japão, que, junto com o resto da Europa Ocidental e da América do Norte faziam parte “tríade” capitalista. Não se tratava de falar de uma crise cíclica, mas do último salto de um modelo de produção baseado no trabalho abstrato; agora, um altíssimo nível de produtividade está cada vez mais em flagrante oposição à sua subordinação ao auto-movimento do dinheiro.

O cenário com que Kurz conclui o seu livro é apocalíptico: uma parte cada vez maior da humanidade, especialmente nas periferias destruídas da América do Sul, África ou Oriente Médio, já nem serve mais para ser explorada, pois está sendo desligada de qualquer vínculo com a economia central e com a civilização. De suas reações desesperadas surgem as guerras civis, o neonacionalismo étnico, o fundamentalismo religioso (não apenas o islâmico) e o temível potencial de um retorno à barbárie. O livro de Kurz, então, vai muito além da compreensão só do passado, pois pode ajudar a entender melhor o presente: a crise global da sociedade mercantil capitalista das últimas décadas em grande parte confirmou as previsões de Kurz – ocorreu o que previu, ainda que com pausas e “momentos retardantes”.

O mais importante desses “momentos retardantes” é que eles explicam porque o colapso não seguiu o ritmo previsto por Kurz. Eis que a expansão da esfera financeira ocorreu além de qualquer coisa imaginável. O crescimento colossal das dívidas, tanto públicas como privadas, de forma alguma resolveu os problemas do capitalismo; apenas adiou o estouro de bolhas especulativas, as quais levarão ao colapso à chamada “economia real”. Kurz nunca se cansou de apontar isso. Deve-se admitir, entretanto, que a capacidade da sociedade mercantil de prolongar a sua vida por pequenos surtos tem se mostrado surpreendente.

Se este livro contém as principais características da crítica do valor, também marca um estágio intermediário em seu desenvolvimento. Os fundadores da “crítica do valor”, incluindo Robert Kurz, prontamente viram o seu próprio desenvolvimento teórico como um abandono gradual, às vezes difícil, dos dogmas do marxismo tradicional. Um processo que tem evocado uma dialética entre continuidade e ruptura. A crítica do valor será assim marcada por contínuos avanços na elaboração, desenvolvimento e especificação de sua abordagem teórica – Kurz, pensando ainda em sua última obra de 2012, Dinheiro sem valor, tomou-a como “uma revolução teórica inacabada”. O colapso da modernização, portanto, tem ainda diversas limitações que mais tarde serão superadas nos escritos posteriores de Kurz.

Assim, a crítica do trabalho como fundamento da sociedade do valor ainda não está completa – mesmo se se considera agora que o trabalho deve ser abolido e não valorizado. Em várias ocasiões, Kurz ainda segue o Marx exotérico em sua dupla concepção aporética do trabalho.[4]: transistórico em sua qualidade de esforço, “metabolismo com a natureza” ou necessidade natural e, depois, numa perspectiva mais restrita, confinado ao capitalismo, como “trabalho moderno”, trabalho que cria mais-valor. Isso às vezes o leva a projeções gerais de conceitos da crítica da economia política nas sociedades pré-capitalistas. Quer se trate da mercadoria que aí teria existido “sob a forma de nicho” ou do “valor de uso” que ainda aí teria constituído o horizonte do “trabalho”.[5]

Kurz chega a afirmar, no primeiro capítulo, que “falar de uma sociedade do trabalho como um conceito ontológico seria uma tautologia, porque em toda a história até os dias atuais, a sociedade, em todas as suas formas possíveis, não poderia deixar de ser uma sociedade de trabalho. Nessa concepção, o trabalho enquanto uma atividade produtiva voltada para a necessidade teria apenas mudado de forma na modernidade capitalista.

Isso leva Kurz a usar sem escrúpulos a famosa ideia de Marx referente a uma “missão civilizadora” do capital por meio do desenvolvimento das forças produtivas. Estas forças, por meio de um emaranhado cada vez mais inextricável, que ocorre em nível mundial, entrariam finalmente em contradição com o princípio competição, que é a força motriz por trás das mudanças. No final do livro, chega mesmo a falar de um “comunismo de coisas” estabelecido às costas dos atores da sociedade capitalista e que os libertaria, de forma consciente, dos constrangimentos destrutivos e obsoletos da valorização.

Os anos que se seguiram à publicação de O colapso da modernização testemunharam estágios consecutivos da luta para remover esse tipo de entulho herdado do marxismo tradicional. Em um esforço para aprofundar a crítica e para desenvolver os seus conceitos, Kurz e a corrente da crítica de valor gradualmente massacraram todas as vacas sagradas do marxismo e outras correntes progressistas ou revolucionárias. Na entrevista citada acima, Robert Kurz especificou melhor:

A nova teoria inicialmente se concentrou em um maior desenvolvimento da crítica da economia política. A teoria da crise e a crítica do sistema de produção de mercadorias, incluindo as formas da política e da nação, foram novos conteúdos, mas a reflexão sobre esses conteúdos permaneceu no quadro de uma concepção tradicional da teoria. O caráter abstrato-universalista de toda compreensão teórica no mundo moderno, como um momento de sua ontologia, não foi considerado, assim como o conceito de sujeito e a moderna relação de gênero que lhe está ligada. Seguindo o modelo da filosofia hegeliana, a nova abordagem seguia um procedimento por “derivação lógica”, no qual a relação entre essência e aparência deveria ser resolvida como uma equação matemática.

Este pensamento abstrato e universalista característico de toda a teoria moderna, enraizada como está na filosofia do Iluminismo, combinou-se com um apego teimoso igualmente impensado à metafísica da história inerente ao Iluminismo: o sistema moderno de produção de mercadorias foi posto em questão por ter sido visto como o futuro, com base na teoria da crise, mas no passado continuou a ser entendido como um pretendido “progresso” para além da suposta obscuridade, naturalidade e animalidade do mundo agrário pré-moderno. Na esteira de Marx, a teoria da crítica do valor abordou o fetichismo da era moderna supostamente racional de uma nova maneira; no entanto, como o próprio Marx, ela inscreveu precisamente esta nova descoberta na filosofia ideológica da história desta “falsa racionalidade”.

A ideia de uma dialética do progresso foi, portanto, abandonada, para ser substituída pela exigência de uma tabula rasa radical, a única que seria capaz de emancipar a humanidade da dominação capitalista. Por etapas sucessivas, livramo-nos de uma compreensão transistórica do trabalho[6], de uma visão até dialética ou negativa do progresso e do Iluminismo[7] e, portanto, de uma prática teórica androcêntrica de derivação e de identidade.

No entanto, esse processo de descompensação teve, ao mesmo tempo, que ser cauteloso com as sereias do pós-modernismo que surgiram na mesma época. Pelo contrário, era urgente criticar simultaneamente o antigo conceito hegeliano de totalidade e a nova “différance” derridiana, o culto do progresso e da nostalgia equivocada com nuances reacionárias, do determinismo histórico e do falso imediatismo (Adorno) a-histórico, o conceito de uma totalidade idêntica a si mesma e às identidades fragmentadas e flexíveis, que, no final, não podem ser reduzidas a nada além de si mesmas.

Acima de tudo, ainda faltava a crítica da dimensão patriarcal da sociedade mercantil, que alguns anos mais tarde se tornaria tão importante, ao ponto de troca o nome da escola para o de “crítica do valor-dissociação” (Wert-Abspaltungskritik ). De fato, a antiga crítica do valor até então não havia saído do campo da crítica androcêntrica, “esquecendo” e obscurecendo o outro lado da reprodução do produtor de bens, necessários e inferiorizados simultaneamente.

 Finalmente, era preciso ver no capitalismo um patriarcado produtor de mercadorias, e não mais, simplesmente, considerar a dominação patriarcal como algo derivado da auto-movimento do valor. Considerar como coessencial a parte dissociada e feminina da reprodução capitalista global não poderia ter emergido apenas com um pouco de polidez paternalista por parte do “grande teoria”, mas isso teve de ser arrancado pelo conflito e pela polêmica, acompanhados por uma boa parcela de aborrecimentos e rupturas. É a partir da matéria “O valor é o macho” de Roswitha Scholz, escrito em 1992, que essa brecha foi aberta.[8]

Porém, neste último escrito, a teoria da crise já encontrou a sua forma quase completa: é a substituição crescente do trabalho vivo – única fonte de valor e de mais-valor – pela tecnologia que “derrete” a substância do valor e, com ela, o próprio Ocidente. Como Kurz observa em retrospecto, foi somente com O colapso da civilização que os dois principais avanços na crítica do valor já elaborada puderam ser sistematicamente unidos: a crítica de um “socialismo” baseado no trabalho abstrato e na produção de mercadorias e a nova teoria da crise.

Pela idade deste texto, o leitor se deparará com uma dupla exigência: por um lado, será confrontado com fatos de trinta anos atrás, situados, como mencionamos acima, entre a queda do Muro de Berlim e a queda da URSS. Ele notará que falamos do primeiro no passado e do segundo no futuro. Ele terá, portanto, que ler este texto como um documento histórico que atesta uma etapa no caminho de uma crítica social que nunca teve outra intenção senão abolir a sociabilidade mercantil.

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[1] Publicado agora em francês pela editora Editions Crise & Critique, em abril de 2021

[2] Robert Kurz, Der Kollaps der Modernisierung – 15 Jahre später. Entrevista para Zeitschrift. Traduzido em Reportagem, São Paulo (outubro 2004). Disponível em: https://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=168.

[3] Ver Robert Kurz, La Substance du capital, Paris, L’Échappée, 2019.

[4] Ver Nuno Machado, L’aporie du concept de travail chez Marx : une analyse chronologique, in Jaggernaut, n° 3 ; Abolissons le travail ! Crise & Critique, 2020, e Robert Kurz, La Substance du capital, op. cit.

[5] Sobre os desenvolvimentos posteriores de Robert Kurz, pode-se consultar a resenha de Anselm Jappe do livro Geld ohne Wert, Robert Kurz, Voyage au coeur des ténébres du capitalisme, publicado em La Revue des Livres, n° 9, janeiro de 2013; também disponível em http://www.palim-psao.fr, e mais precisamente em La Substance du capital, op. cit.

[6] Robert Kurz, The Substance of Capital, op. cit.

[7] Ver Robert Kurz, Raison sanglante. Essais pour une critique émancipatrice de la modernité capitaliste et des Lumières bourgeoises, Albi, Crise & Critique, 2021.

[8] Roswitha Scholz, La valeur, c’est le mâle. Thèses sur la socialisation par la valeur et le rapport de genre ; R. Scholz, Le Sexe du capitalisme. Masculinité et féminité comme piliers du patriarcat producteur de marchandises, Albi, Crise & Critique, 2019.