O herói trágico e o desocultamento da alienação

Autor: Todd McGowan[1]

Resumo

O que separa o herói trágico antigo do moderno é a alienação. O contraste entre a obediência de Antígona a seu ancestral e o questionamento de Hamlet sobre a autoridade de seu pai morto deixa clara essa diferença. A alienação evidente na tragédia moderna fornece a base para a emancipação porque revela como a subjetividade pode não coincidir com as injunções postas por qualquer forma de autoridade social, mesmo aquela que desafia a ordem dominante.

Rompendo consigo mesmo

A emancipação só está presente no universo moderno. Trata-se de uma subjetividade que rompe com o domínio da autoridade da tradição sobre si mesma. Essa ruptura exige que o sujeito reconheça que não se enquadra na ordem social que habita.

O descompasso entre subjetividade e ordem social é condição sine qua non da emancipação. E esse descompasso só se torna visível no universo moderno, onde essa ruptura se torna evidente e atravessa toda a sociedade. A modernidade confronta a subjetividade alienada que a sociedade tradicional obscurece.

A ilusão de pertencimento aprisiona a subjetividade nas determinações externas que emolduram sua existência. A alienação posta como tal, ao contrário, separa o sujeito falante de si mesmo e permite que ele atue contra os fatores externos que, de outra forma, determinariam sua existência.

Somente o sujeito consciente de sua alienação pode participar do projeto de emancipação. A modernidade, contudo, não tem o monopólio da alienação. Mas a alienação só pode ser genuinamente emancipatória quando ela é reconhecida como tal.  

A destruição da ilusão de solidariedade à ordem social e à sua tradição é a grande realização da modernidade. As invenções da ciência moderna e as inovações da arte moderna demonstram que o sujeito se destaca de seu mundo. A modernidade liberta o sujeito para experimentar a alienação que o define como ser falante[2], ao evidenciar a distância que separa o sujeito da identidade ao social. À medida que a ciência moderna advém, ela desloca o sujeito de sua posição de produto da criação divina; por seu turno, a arte moderna revela as ramificações desse descolamento na forma estética. A tragédia moderna mostra o sujeito alienado como a figura capaz de desafiar sua posição social e até mesmo a si mesmo.

Essa característica separa a tragédia moderna das maiores tragédias antigas, como a Antígona de Sófocles. Ao contrário de seus colegas modernos, Antígona sabe o que deve fazer e faz. Ela nunca duvida da justeza de que deve enterrar o seu irmão Polinice; ela nunca questiona como ela vai cumprir seu dever, mesmo quando isso gera a perda de si mesma e uma catástrofe para Tebas como um todo. O dever se afigura aqui inequívoco.[3]

Desde a primeira cena da tragédia de Sófocles, Antígona se compromete com um ato ético com tanta veemência que toda a força da autoridade legal que Creonte não pode dissuadi-la desse compromisso. Nada do que acontece posteriormente faz com que Antígona questione suas motivações ou o seu julgamento. A ausência de dúvidas de Antígona permite-lhe ser o modelo de comportamento ético para muitos intérpretes da peça teatral.[4] Mas essa ausência de dúvida separa Antígona definitivamente da época moderna. A sua incapacidade de se questionar a impede de ser uma figura de emancipação.

A recusa da dúvida de Antígona é evidente desde a primeira cena de Antígona. Nesta cena, ela não leva em conta as perguntas legítimas que sua irmã Ismene coloca. Em vez disso, depois que Antígona expõe brevemente a situação para Ismene, ela diz categoricamente: “Esse é o problema. E agora você pode provar quem você é: boa irmã ou covarde que comete desaforo para nossos bravos antepassados.”

A declaração de Antígona não deixa margem de manobra para Ismene se reconciliar com a lei de Creonte. Mas, ao mesmo tempo, Antígona apela para um dever que eles têm com a autoridade do passado. Eles devem agir de acordo com as exigências que a tradição lhes faz, em vez de seguir a lei dominante da terra. Apesar da radicalidade do ato de Antígona, ela não pode formular esse ato em termos de ruptura com a tradição. Embora Sófocles mostre Antígona se revoltando contra Creonte, ele nunca a retrata se afastando da tradição que ela herda. A principal barreira à sua autonomia é sua incapacidade de vislumbrar sua relação disjuntiva com a sociedade.

O contraste entre Antígona e os principais heróis trágicos de Shakespeare revela que a emancipação consiste numa negação da alienação. Ao contrário de Sófocles, Shakespeare enfatiza a distância que existe entre as forças da ordem social e o herói trágico, distância que os próprios heróis captam. A determinação obstinada de Antígona em agir se destaca da coleção de questões que os heróis trágicos modernos põem para si mesmos. A emancipação torna-se uma possibilidade no universo moderno porque a alienação se torna evidente para o próprio sujeito – e a tragédia moderna faz com que essa alienação se manifeste ao espectador.

Demandas questionáveis

Shakespeare escreveu suas quatro tragédias mais importantes no início da época moderna. Não é por acaso que o primeiro deles, Hamlet, foi realizado pela primeira vez em 1600, data que marca simbolicamente o alvorecer da modernidade. Junto com Hamlet, as outras grandes tragédias – Otelo, Rei Lear e Macbeth – tomam a alienação do ser social, assumida como tal na modernidade, como foco principal.

Os personagens dessas peças são capazes de grandeza trágica graças à sua incapacidade de se encaixar em seu mundo ou de alcançar a harmonia consigo mesmos. Shakespeare ilustra a possibilidade de emancipação ao insistir na condição necessária da alienação. Mesmo quando os personagens das tragédias de Shakespeare são diabolicamente maus, as suas maldades decorrem de uma disjunção fundamental que se torna aparente no universo moderno.

Quando se contrasta Hamlet   com Édipo Tirano ou Otelo com o Ajax, rapidamente se torna claro que o sentido do que constitui a tragédia mudou drasticamente com o nascimento da modernidade. Os heróis trágicos de Shakespeare possuem uma autodivisão que os heróis de Sófocles não têm. Eles não podem simplesmente seguir os ditames dos deuses tal como o faz Antígona. Em vez disso, os sujeitos modernos devem questionar o que podem acreditar, não importa em que autoridade articule o que devem fazer.

Há, pois, oposições claras no mundo de Sófocles — entre Antígona e Creonte, entre Electra e Clitemnestra —, mas há contradições internas postas como tais no universo de Shakespeare. Ele está no início da época moderna como farol mostrando que a alienação não é uma situação a ser superada, mas a base para a liberdade.

O panegírico da alienação de Shakespeare é mais evidente em Hamlet, a primeira das grandes tragédias. Hamlet é uma figura de dúvida e autocrítica. A sua própria divisão se revela e possibilita o seu distanciamento dos ditames da ordem social em que vive. No início da peça, ele recebe uma ordem de seu pai morto, a figura máxima da autoridade simbólica.[5]

Mas, em vez de embarcar imediatamente no cumprimento da ordem do rei morto de matar o usurpador Cláudio, Hamlet questiona a origem da ordem, como obedecer corretamente se a autoridade é legítima e seu próprio status como filho real. A antiga heroína Antígona sabe o que deve fazer e não vacila – deve enterrar seu irmão Polinice, apesar da proibição do governante Creonte; ela o faz mesmo se essa proibição está acompanhada da pena de morte. Hamlet, ao contrário, relaciona-se com seu dever e consigo mesmo, mantendo certa distância crítica.

A alienação de Hamlet está na fonte de sua recusa em agir prontamente, ou seja, matar Cláudio imediatamente. Toda a energia crítica envolvida na solução do problema da inação de Hamlet não reconhece a dúvida e o autoquestionamento como as formas modernas de ação. Não devemos ver tais injunções como inação, mas sim como formas de agir.

Por mais convincente que possamos encontrar uma certa explicação para o atraso de Hamlet, conceber a peça em termos de atraso perde a forma como o sujeito alienado age.[6] Ela não age por autocerteza, mas por meio de uma autolaceração que divide o sujeito de sua situação social, assim como o divide de si mesmo. Hamlet é um sujeito moderno porque age questionando a figura da autoridade simbólica e sua própria identidade que está apoiada nessa figura.

No início da peça, Hamlet expressa tanto sua própria alienação quanto a alienação generalizada do mundo em que vive. A peça articula isso com referência à temporalidade que parece não mais operar como deveria. Eis o que Hamlet afirma: “O tempo está fora do comum. Ó maldito rancor!  Eis que nasci para acertá-lo.” Hamlet se refere aqui à desordem no mundo que Cláudio desencadeia quando mata o pai de Hamlet e se casa com sua mãe. É por isso que o mundo está fora de comum para ele especificamente.

 Mas, em outro sentido, Hamlet fala pelo sujeito moderno como tal. Não há sujeito moderno para quem o tempo não esteja desarrumado: a existência da alienação universal torna-se evidente para todos, ou seja, não apenas para aqueles cujos pais foram assassinados.

Embora Hamlet fale aqui sobre acertar o tempo, suas ações indicam que ele não acredita na restauração da posição pré-moderna do homem. Em nenhum momento da peça Hamlet abandona o ato de questionamento que define sua subjetividade moderna. A sua característica marcante é o desafio à autoridade da tradição, autoridade que aqueles que fogem de sua alienação buscam como refúgio.

O sujeito como tal recebe suas ordens da tradição, assim como o fantasma do pai de Hamlet ordena que ele vingue a sua morte matando o seu assassino, Cláudio. Mas o sujeito moderno, em contraste com o sujeito da tradição, pode responder com dúvida e não com obediência. Em vez de confiar na figura da autoridade paterna, Hamlet questiona essa autoridade, e sua resposta leva a mais perguntas sobre o significado da própria existência.

O desafio à autoridade tradicional produz uma série de dúvidas em cascata que transformam Hamlet em um exemplar da subjetividade moderna. O questionamento àquilo que a tradição exige obediência revela a lacuna em que a subjetividade existe. Hamlet não pode responder à demanda de seu pai da maneira como deveria, porque ele já sente que não pertence totalmente ao mundo de seu pai. O seu questionamento evidencia sua alienação do mundo em que labuta.

O questionamento incessante de Hamlet define a sua rejeição à autoridade da liminar paterna. Ele questiona em vez de obedecer, e esse questionamento sinaliza sua fidelidade à modernidade. Shakespeare, durante a peça teatral, nunca mostra Hamlet redescobrindo o seu lugar dentro da tradição. Em vez disso, ele se destaca como uma figura alienada da tradição que tenta colocá-la num lugar claramente definido.

O seu questionamento, entretanto, não impede a sua atuação em última instância. Quando Hamlet age e mata Cláudio, Shakespeare não apresenta esse ato como o cumprimento do destino que seu pai lhe deu. E é por isso que o fantasma do pai de Hamlet não aparece em nenhum lugar para ser visto antes, durante ou depois da morte de Cláudio.

Embora o fantasma de seu pai retorne após a sua primeira visita para lembrar Hamlet de seu dever, ele está ausente na última cena decisiva da peça. Hamlet mata Cláudio como alguém alienado em relação ao destino que o pai lhe havia reservado. Quando se trata finalmente de matar Cláudio, este é um ato inteiramente de Hamlet; como questionara a vontade do pai, esse ato se afigura independente do comando de sua autoridade.

Ele age, portanto, sem depender de nenhuma autoridade; contudo, age em vez de apenas se contentar com a própria rebelião. Isso mostra que Shakespeare entende que a condição de alienação exige que o sujeito assuma a responsabilidade por suas próprias ações. Hamlet não pode transformar o questionamento em sua própria forma de identidade simbólica, como muitos fazem quando desafiam figuras de autoridade. A ausência do pai de Hamlet enquanto Hamlet realiza o ato deixa claro que Shakespeare nunca abandonou a causa que inaugurou na peça.[7] Nunca voltamos do sujeito alienado da modernidade às garantias da autoridade tradicional.

A popularidade duradoura de Hamlet deriva de seu status como a obra moderna exemplar. Embora as pessoas ao longo da modernidade tentem se refugiar em uma identidade simbólica, em Hamlet, o teatrólogoShakespeare mostra que é impossível encontrar qualquer refúgio nessa esfera. A tentativa de fazê-lo sempre falha, como revela o comportamento de Hamlet em relação aos outros personagens da peça. A recusa de Hamlet em confiar em sua identidade simbólica como base para agir é um paradigma para a modernidade que expõe simultaneamente o fracasso de qualquer investimento. O sujeito moderno pode tentar se investir na identidade simbólica, mas Hamlet mostra por que isso não vai dar certo.


[1] Todd McGowan é um professor de inglês na Universidade de Vermont, onde leciona cinema e teoria cultural. Insere-se na tradição que pensa a partir de Hegel, da psicanálise de Freud e Lacan, assim como com o existencialismo.

[2] N. T. É importante notar nesse ponto que o autor é lacaniano; eis que ele toma a linguagem como esfera de alienação de tal modo que a alienação se torna uma condição insuperável. Hegel e Marx, ao contrário, tomam a linguagem como esferas que permitem a alienação (cuja fonte se encontra na sociabilidade histórica e não na linguagem enquanto tal), mas também, portanto, a desalienação por meio da crítica. Como pós-moderno, Lacan não acredita mais no poder da crítica radical.

[3] A motivação para o ato de Antígona tem um sentido ético. Ela simplesmente não desobedece a lei para desobedecer à lei. Ela transgrede a lei de Creonte para preservar a singularidade de Polinice, uma singularidade que ultrapassa essa lei. Polinice havia pegado em armas contra sua própria terra, o que levara Creonte a proibir seu enterro. Mas Antígona não reconhece a autoridade dessa lei, contesta que ela possa ir tão longe. Ela defende Polinice contra a lei que quer ir longe demais. Como assinala Jacques Lacan, “a posição de Antígona representa o limite radical que afirma o valor único de seu ser sem referência a qualquer conteúdo, a qualquer bem ou mal que Polinice possa ter feito, ou a tudo o que ele possa ser submetido”.

[4] Em sua discussão sobre Antígona, Joan Copjec esclarece o que a peça e a personagem revelam a irredutibilidade do sujeito às suas condições. Essa irredutibilidade é a base da liberdade. Se as condições em que existimos nos determinam, não podemos ser livres. Segundo Copjec, “porque a lei contém esse excesso louco em que se perde, por assim dizer, o sujeito pode cumprir a lei ou levar adiante o nome de família sem simplesmente repetir no presente o que já foi previsto e ditado pelo passado” (Copjec 2002, p. 45). Antígona não é simplesmente o que sua ordem social faz dela. Sua resposta excessiva à lei que Creonte estabelece revela o excesso dentro da própria lei, a incapacidade da lei de coincidir consigo mesma.

[5] Quando Hamlet aparece pela primeira vez, vemos a distância que mantém em relação a autoridade dominante na Dinamarca, a de seu tio Cláudio. Enquanto todos os outros comemoram, Hamlet permanece distante e insiste em sua distância de Cláudio e de sua mãe que se casou com ele.

[6] Uma vez aceita a hipótese de um atraso, Sigmund Freud oferece a explicação mais convincente para isso. A sua interpretação, desenvolvida inicialmente em uma nota de rodapé em A interpretação dos sonhos, recebe um tratamento mais completo em Jones (1976). De acordo com Freud e Jones, Hamlet demora porque inconscientemente deseja fazer o que Cláudio fez, ou seja, matar o pai e fazer sexo com a mãe.

[7] Pode-se imaginar um final alternativo de Hamlet em que o fantasma apareceu no palco com um olhar satisfeito em seu rosto logo após a morte de Cláudio. Se George Lucas tivesse escrito Hamlet, esse certamente teria sido o resultado, espelhando a aparição milagrosa dos fantasmas de Obi-Wan Kenobi (Alec Guinness), Yoda (Frank Oz) e Anakin Skywalker (Sebastian Shaw) na conclusão de O Retorno de Jedi (1983), de Richard Marquand.