Uma nota inicial do professor da FEA “transformado” em blogueiro.
Publica-se em sequência uma introdução ao livro Marx, o Capital e a metafísica de João Paulo, escrita por ele mesmo. Como a controvérsia faz parte dos propósitos do blog Economia e Complexidade, tem-se aqui um texto que, segundo o seu autor, vem a ser uma introdução curta ao conteúdo de uma obra maior que pretende renovar a compreensão da apresentação dialética de O capital. O endereço eletrônico do livro encontra-se ao final do artigo.

Uma introdução
Autor: João Paulo – Blog Canhoto – 26/06/2023
Faço esta introdução para agradar paladares do marxismo oficial, o acadêmico. De tal modo, aqui não estará exposto em exato um resumo do livro inteiro ou algo do tipo; por isso, adianto temas que apenas serão claros no desenrolar da obra. Como o assunto é difícil e desagrada o senso comum teórico, senti necessidade de antecipar algo, para facilitar a aceitação de nossas teses. Portanto, peço mente aberta, sem críticas a priori.
O QUE É METAFÍSICA
Metafísica é saber os aspectos mais gerais da realidade. Não se limita ao físico ou ao químico, ao biológico, ou social – quer o comum deles, neles, juntos. E pronto, apenas isso. É saber o Ser – a realidade total, incluso suas relações – enquanto Ser. Por que o mundo é assim e não de outra forma? Quais são as leis universais do mundo? Qual a origem de tudo? Qual a natureza do tempo? Há liberdade ou determinismo? Eis perguntas metafísicas, gerais. Trata-se de saber o “por que” o mundo é assim, não apenas o “como” ele opera, age, repete-se. Ninguém com mente saudável negaria tal objetivo.
A metafísica medieval é religiosa, mas nem toda ciência metafísica precisa estar ligada à religião. Ela é a área mais ampla da filosofia e, logo, da ciência. Levantamos isso porque se confunde muito em tal tema; por exemplo, a metafísica não precisa ser uma série de princípios arbitrários, tirados não sei de onde, que guiam toda uma dedução de pensamento. Nossa metafísica deriva da física, da realidade, da materialidade, do empírico e sensível.
O CAPITAL E A METAFÍSICA
Marx “diz” do capital que ele é uma metafísica real, concreta, materialista. Por isso, o dinheiro é o Deus efetivo e real de nosso tempo, o demônio a ser destruído. Tal divindade sensível desconhece qualquer limite e dobra a humanidade aos seus pés. Pois bem; isso ainda é dizer pouco, muito pouco em verdade. A coisa toda é muito mais sofisticada, ainda clara.
Jadir Antunes, que também trata da metafísica em O Capital, embora pense a obra apenas como base de uma “crítica da metafísica”, nunca sua afirmação positiva, lembra que é pedra angular da metafísica isto: o abstrato domina o concreto. Quem leu a obra de Marx com atenção toma de pronto um susto! De fato, o valor domina o valor de uso! O trabalho abstrato domina o trabalho concreto!
Mas para Jadir o valor é algo relacional, então cai em erro. Descobri – e exponho em um capítulo – que uma das grandes oposições unilaterais da ciência moderna é entre relacionalismo e substancialismo (se quiser, fetichismo). No capítulo 1 d’O Capital, o nosso mestre demonstra que o valor é substância, “algo”, propriedade real, até mesmo “sujeito”; mas a forma do valor – como a forma preço – trata-se de algo relacional, comparativo etc.
Lembremos que valor não é preço: a mercadoria pode estar com o preço acima ou abaixo do seu valor real. O preço é mero nome do valor. Dito isso, nada custa lembrar que quase todo o marxismo até hoje não entendeu isso, o mais básico ensinamento, nas primeiras páginas da obra citada. É insuficiente ter bons olhos e boa razão para bem ler.
O preço, dado pelo comerciante, é ideal; o valor é material – repetimos, material. Vamos às citações. Para Marx, o valor existe; leiamos:
“O valor do ferro, do linho, do trigo etc., apesar de invisível, existe nessas próprias coisas… “ (Marx, O capital I, 2013,, p. 170; grifos meus)
Que absurdo! A realidade, social ou quântica, tem o direito de ser absurda. Por exemplo: a energia existe, embora não seja diretamente observável, apenas indiretamente por meio de suas formas e manifestações.
Como cada um tem um Marx para chamar de seu – diga-se de passagem: com frequência, culpando Engels de todos os pecados –, vamos para mais uma citação:
“Aqueles que acham que atribuir ao valor existência independente é mera abstração esquecem que o movimento do capital industrial é essa abstração como realidade operante (in actu).” (Marx, O Capital – livro 2, 2014, pp. 119, 120; grifos meus)
Como dissemos, abstração que domina o concreto. Em minha metafísica – marxista, ortodoxa até – descubro uma equação qualitativa: o abstrato é o concreto em processo. Assim, o trabalho abstrato, produtor de valor, é o trabalho concreto, produtor de valor de uso, em processo, no tempo, em movimento. Assim, o capital (abstrato, que não é coisa) é o valor (material, embora invisível) que se altovaloriza (processo, movimento). Sobre este ponto, deixo ao leitor a curiosidade de saber mais no decorrer da obra. Passemos, portanto, para as demais questões.
Quando Marx abre sua obra propondo tirarmos todas as qualidades, determinações e características da mercadoria – cor, peso, tamanho, massa etc. –, afirma: sobrou apenas uma gelatina (abstrata!) de trabalho. Veja bem; isso não é mera metáfora! Mais que isso: uma dedução da empiria! Isso é a chamada “coisa-em-si” – exclusão das propriedades da coisa – que Kant supôs ser metafísica, portanto, para ele, inalcançável tanto aos sentidos quanto à razão. Marx, assim, refuta o kantismo antimetafísico. Vemos que ser contra a metafísica é abraçar sem mais o kantismo e a ciência aburguesada.
Na última citação, Marx critica os economistas que, eles sim, perceberam o valor como algo, propriedade real, mas disseram se tratar de “mera” abstração (gnosiológica, não ontológica). Anos depois, Engels também comenta nesse sentido no posfácio ao livro III: para os críticos, o valor seria uma categoria útil, mas fictícia, artificial, própria para entender a realidade. Ou seja, kantismo. Engels, ao contrário, afirma a existência do valor.
Vale, então, dois pontos antes de avançamos para o próximo aspecto. Postone acerta ao dizer que o valor é como o “espírito absoluto” de Hegel, embora tenha errado o tiro. E Jadir Antunes acerta ao dizer que o ouro, a suposta forma final do dinheiro, é o modo metafísico da forma de valor, pois com tal matéria dourada e rara ele se torna imperecível, melhor, O Imperecível. No entanto, a teoria do dinheiro em Marx está incompleta, algo que atualizo na minha obra “A crise sistêmica”, cujo capítulo específico indico já que não é nosso foco por aqui.
O QUE É, AFINAL, O VALOR?
Na física, energia é capacidade de trabalho. Ainda em tal ciência, trabalho é transferência de energia. Desde algumas notas de rodapé de Marx, penso que ele tomou da física clássica (correta) sua concepção de valor. A energia, não força, de trabalho – uma redundância necessária – produz uma outra forma de energia, o valor, a forma social, presa ainda à natural, de energia.
Isso resolve tudo, mesmo: trata-se da explicação definitiva da obra de Marx e de nosso modo de produção. Por exemplo: o valor, como propriedade energética sui generis, apenas pode estar numa coisa material – logo, serviços não produzem valor.
A leitura imanente da parte sobre extensividade e intensividade do trabalho demonstra tal tese com toda clareza. Primeiro, se aumento a intensividade, reduzo a extensividade da jornada, pois o trabalhador cansa mais rápido. Se, ao contrário, aumento a extensividade, reduzo a intensividade, por cansaço também. O que une os conceitos opostos? A energia do trabalhador[i].
Mas há muito mais a dizer.
O valor não é – não é, diferente do que pensa a maior parte dos marxistas – tempo de trabalho (socialmente necessário para reproduzir uma mercadoria). O valor é apenas MEDIDO assim; medida inexata, aliás, imperfeita, defeituosa, apenas aproximada. Vejamos. Se trabalho por 1 hora com certa intensidade normal, logo produzo um tanto de valor de uso e um tanto de valor, pois gastei um tanto certo de energia. Ora, se, na mesma 1 hora, dobro a intensidade do trabalho, trabalho em dobro no mesmo tempo, logo produz o dobro de valor! No mesmo tempo, 1 hora! Tudo porque gastei o dobro de energia. Valor é forma social de energia, substância invisível.
Isso fere nosso senso comum e o bom senso. Mas assim é, então devemos aceitar a verdade intragável. Como ideia nova, nova interpretação, natural que seja atacada e minoritária, mesmo em meios racionais. Vamos digerir o produto. “Tem que se deixar de lado a opinião de que a verdade tem que ser algo palpável.” (Hegel G. W., 2016, p. 53)
O valor entra em crise em nosso tempo – e apenas podemos acessar o socialismo se sua categoria central entra em crise. Do ponto de vista externo, apresenta-se assim: o valor-energia torna-se, cada vez mais, capital-massa, claro, menor quantidade de trabalhadores a produzir valor. A crítica do valor acerta aqui, ainda que de modo unilateral e impressionista[ii], embora erre em quase tudo.
Marx diz que podemos virar e desvirar a mercadoria, mas não encontraremos nela nenhum átomo de valor! No entanto, ela gira! Daí derivaríamos a casa do valor e da energia não empíricos como quarta dimensão espacial, o “lugar” da infinitude qualitativa e causa do movimento, isto é, de queda da matéria em si mesma? Nesse momento, o leitor apegado aos olhos e ao que há apenas diante de si – como Aristóteles! – salta da mesa e grita contra o texto! Isso soa um delírio completo e desmoralizante porque ainda não o derivamos passo a passo, com todo o cuidado necessário – algo feito na obra inteira. A verdade está próxima da irracionalidade, sem nela desabar. Mas esqueçamos este parágrafo saltitante como um deslize do autor… vejamos, portanto, o método!
O MÉTODO METAFÍSICO DE MARX
O que Marx faz não é mera descrição da realidade; para isso, nada de fato científico seria necessário. Ele vai direto para a empiria, para os dados, para os fatos, para o sensível – sem premissas, postulados mentais, concepções, conceitos, modo de separar o complexo concreto etc. Mas isso é metade do caminho: o método dialético é, grosso modo, empírico-dedutivo; da empiria, deduz-se o que não é empiria. Do sensível, deduz-se o não sensível, o suprassensível, ou seja, o invisível aos olhos ou essência. Vai-se ao Ser, isto é, observa-se o qualitativo, o quantitativo e, então, mede; depois, por isso, deduzimos seu lado essencial, antes oculto; depois, apenas no fim, chegamos aos conceitos e à concepção de como o mundo de fato é em si mesmo, longe de artificialidades mentais.
Ouçamos Marx:
“Inicialmente, eu não parto de “conceitos”, portanto, nem mesmo do “conceito de valor”, e, assim, de modo algum tenho também que o “dividir”. Parto da forma social mais simples na qual o produto do trabalho se apresenta dentro da sociedade atual, e essa forma é a “mercadoria”. Eu a analiso, em primeiro lugar, precisamente dentro da forma pela qual ela aparece. Aqui descubro então, que, de um lado, ela é, dentro de sua forma natural, uma coisa de uso, também conhecida de valor de uso; de outro lado, ela é portadora de valor de troca e, desse ponto de vista, é por si mesma, “valor de troca”. A análise posterior desse último me mostra que o valor de troca é apenas uma “forma de manifestação”, modo autônomo de apresentação do valor contido na mercadoria, e então início a análise do valor.” (Marx, Últimos escritos econômicos, 2020, pp. 57, 58; grifo meu)
Tomando as pistas da própria empiria, Marx foi cada vez mais ao mais puro e simples, diluindo, separando, abstraindo tal como fez, ao seu modo, o metafísico Platão. Levou tal processo químico e metodológico até as últimas consequências. Assim, ele alcançou o mais abstrato, o conceito mais simples e geral, além de não diretamente empírico, o valor; que é conceito real, realidade e conceito.
Seguindo o pesado perfil de suas épocas, Marx e Engels foram contra a ontologia (que é apenas uma parte da metafísica, lembremos). No entanto, Lukács provou a existência de uma ontologia marxista desde a nossa tradição. De igual maneira, foram contra a metafísica, embora, sobre e sob o capitalismo, Marx tenha deixado claro seu lado metafísico real. As chamadas formas platônicas, por exemplo, tomaram o modo de “forma do valor”, “forma preço”, “forma mercadoria” etc., que não são coisas como o objeto, o valor de uso (toca-se o produto, não a mercadoria; não se pode tocar de fato o preço, apenas sua representação numérica). Engels – e afirmou-me de já como engelsiano – contrapôs dialética e metafísica em sua Dialética da natureza. É compreensível, mas foi um erro do fundador de nossa tradição. Ademais, as condições para a metafísica marxista em forma teórica apenas deram-se na história recente. Antes, seria improvável, talvez relativamente impossível. Salvamos, assim, a metafísica de sua suposta crise final. Dialética é o oposto – mas – idêntico da metafísica, uma forma de metafísica materialista.
UMA ANTECIPAÇÃO
Há três leis gerais do Ser, a partir do inorgânico:
- Ser é energia em busca de mais energia.
No social, produtividade crescente – e trabalho. Na biologia a célula e o animal que caça têm de conseguir mais-energia (lembra-nos o mais-valor!) do que o gasto na sua obtenção. No inorgânico, temos a gravidade que atrai mais energia-massa. Ainda no social, mais-valor como forma de mais-energia.
- Ser é ir-se do simples ao complexo.
Isso é evidente no ser social, biológico e físico-químico – hoje, apenas hoje. Para Hegel, o simples já é o complexo, sem o tempo. No marxismo, de modo ainda instintivo, o simples avança ao complexo. No social, isso significa afastamento das barreiras naturais – e sociabilidade.
- Ser é interconexões crescentes.
O instinto marxista diz que tudo está conectado, em interrelações, ou seja, uma concepção estática. Ao contrário, átomos separados aproximam-se e formam moléculas. O olho teve de surgir 6 vezes na história animal, como nova conexão necessária. No social, apresenta-se como tendência lukacsiana de unificação global de nossa espécie (incluso internet etc.) – e como linguagem.
Por fim, nossa dialética marxista.
A lógica formal diz: A = A. Por exemplo, luta política aqui e luta econômica ali, opostos e sem contato. Por exemplo, a verdade é relativa ou absoluta, sem terceira alternativa.
A velha dialética diz: A = A e não-A. Por exemplo, luta política já é luta econômica e, vice-versa, luta econômica é, também, luta política. Por exemplo, a verdade é relativamente relativa, entre o relativo e o absoluto – a terceira alternativa.
A nova dialética, marxista, diz: A = A e… não-A. Por exemplo, luta política torna-se uma série de greves econômicas (após junho de 2013!); luta econômica torna-se luta política, como uma greve geral após muitas greves parciais por salário. Por exemplo, a verdade vai-se de relativa, parcial, limitada, angular para cada vez menos relativa e mais absoluta, cada vez mais verdadeira, do relativo ao absoluto por aproximação.
As duas outras lógicas estão dentro, são internas, desta lógica marxista.
Pela profundidade dessas contribuições, ademais do risco tomado, torna-se necessário colocar sob avaliação e, se caso for, crítica dos pares no sentido de desfazer preconceitos e aperfeiçoar a teoria.
A CRISE SISTÊMICA:
http://library.lol/main/09015B4D8B698F0D47F3B7548BE1754C
A METAFÍSICA MARXISTA:
http://umblogdomundo.blogspot.com/2023/05/a-metafisica-marxista-nova-dialetica-da.html
Bibliografia
Aristóteles. (2002). Metafísica. São Paulo: Loyola.
Hegel, G. W. (2016). Ciência da Lógica 1. A doutrina do Ser. Petrópolis: Vozes.
Marx, K. (2013). O capital I. São Paulo: Boitempo.
Marx, K. (2014). O Capital – livro 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
[i] Na dialética que apresento em minha obra, a energia é o conceito que unifica as categorias opostas da dialética de Hegel.
[ii] Faço uma interpretação muito mais realista da crise do valor na obra “A crise sistêmica”. Grosso modo, sob relações de produção atuais, a automação impede a própria automação. Eis a contradição entre forças produtivas e relações de produção. Por exemplo: o desemprego “tecnológico” produz baixos salários por maior concorrência por emprego entre os operários, logo compensa manter o trabalho manual precarizado contra as modernas e novas máquinas.
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