O trabalho é a base ontológica da sociedade?

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Eis o que se encontra num trecho de Tempo, trabalho e dominação social [2] de Moishe Postone:

Segundo essa visão [do marxismo tradicional que ele critica no livro como um todo], não somente o trabalho é considerado a fonte transistórica de riqueza, mas também aquela [fonte] que estrutura a vida social. A relação entre as duas está evidente na resposta de Rudolf Hilferding à crítica de Eugen Böhm-Bawerk:

“Marx parte de uma consideração do trabalho na sua significância como o elemento que constitui a sociedade humana e […] determina, em última análise, o desenvolvimento da sociedade. Ao fazê-lo, ele capta, com o seu princípio do valor, o fator cuja qualidade e quantidade […] controla causalmente a vida social”.

Ora, o “trabalho” se tornou aqui a base ontológica da sociedade – aquela que determina e controla causalmente a vida social. [3]

O trecho assim citado é um momento representativo da crítica de Postone ao marxismo tradicional, mas qual vem a ser, precisamente, o teor dessa crítica? Postone estaria no lado da dialética marxiana e o marxismo que censura teria recaído em erros cometidos já pela teoria clássica, baseada na lógica formal, isto é, no entendimento?

A partir dessa citação, desenvolve-se em sequência uma nota pouco original que pretende esclarecer a questão da relação negativa da dialética com a ontologia (pelo menos no sentido tradicional desse conceito [4]) com base numa leitura de trechos do livro Introdução à dialética [5] de Theodor W. Adorno – que será complementada, ao final, por um ensinamento de Ruy Fausto. As duas seguintes citações assentam um contexto para a reflexão; indicam também a origem do problema que se busca aqui esclarecer. O primeiro fala na natureza do objeto para a dialética; já o segundo fala da relação entre o pensamento e a objetividade:

1º) Na verdade, os objetos estão, por um lado, em movimento dentro de si mesmos e são repletos de contradições; por outro lado, precisamente em virtude dessa essência contraditória, estão ligados com todos os outros objetos por meio de mediações. [6]

2º) A dialética materialista (…) não é mero processo intelectual, mas um processo da própria efetividade – mantém aquela tendência ínsita à dialética [hegeliana] de tornar decisivo em efetivo o momento da não identidade, da contradição inerente ao objeto do conhecimento, [sem que se afirme, entretanto, que possa haver mesmo ao fim e ao cabo da exposição] (…) uma identidade acabada entre pensar e ser. [7]

Mas o que é esse mundo sobre o qual se volta o pensamento humano social e histórico? Adorno não o apresenta como mera natureza, como algo que exclui aquele ser capaz de atuação e pensamento, mas como uma natureza que foi já transformada material e espiritualmente pela atividade humana:

A experiência decisiva de Hegel consistiu precisamente em ver que o próprio mundo que conhecemos não é, como a filosofia idealista quis nos fazer acreditar, algo caótico, ao qual nós primeiramente conferimos uma forma. Na verdade, já Hegel foi capaz de perceber que as formas conceituais estão já contidas, por seu turno, enquanto sedimento da história humana, nesta própria realidade a ser conhecida.

Isso pressupõe, contudo, que se capte a realidade, tal como ela é apreendida pela filosofia, como uma realidade essencialmente determinada pelo ser humano – porém, não no sentido do objeto do conhecimento constituído, de maneira meramente científica e abstrata, pelo sujeito transcendental, e sim de maneira prática, no sentido de que o mundo, a ser conhecido pela filosofia, deve ser apresentado como um mundo essencialmente mediado pelo trabalho humano. [8]

Aqui, ao se ler esse trecho com cuidado, mas também confiando no saber de Adorno, já se vê que o trabalho é apreendido já na dialética idealista – e assim será mantido na dialética materialista – como transistórico – ao contrário grosso modo do que parece supor Postone, ainda que o modo de trabalhar e a forma da subsunção do trabalho se transforme historicamente. No trecho que se segue, Postone – é evidente, vai longe demais – mesmo se acerta que Marx não tem uma teoria da história –, pois, como se sabe, Marx, diferentemente, tem uma apresentação dialética da história dos modos de produção em que o trabalho é uma categoria central.

Em um nível geral, a teoria de Marx não afirma que o trabalho é o princípio estruturador transistórico da vida social; não abrange a constituição da vida social como dialética sujeito-objeto mediada pelo trabalho (concreto). Na verdade, ela não oferece nenhuma teoria transistórica do trabalho, classe, história ou natureza da vida social. [9]

Contra o entendimento separador do qual Postone não se liberta, o trabalho é compreendido nas duas dialéticas modernas, simultaneamente, como transistórico e historicamente situado – e a história aqui é compreendida não como “mero registro do que acontece no tempo”, mas como algo inerente e constitutivo do gênero humano: eis que o ser humano é o ser que faz e tem história.

Transistórico e não transistórico, como é possível isso. Ora, o conceito de trabalho na dialética tem uma determinação geral (comum aos diferentes modos de produção), mas tem também determinações particulares (distintas entre si conforme muda o modo de produção no nível macrosocial e mesmo quando se refere aos modos de trabalhar microsociais).

As categorias da dialética expressam, em geral, contradições e, assim, afirmações e negações que se determinam entre si. Nesse sentido, uma categoria como trabalho está sempre determinada tanto como um universal quando como um ou muitos particulares; ela pode, por isso, expressar tanto o trabalho em geral e transistórico quando o trabalho num determinado modo de produção ou mesmo em circunstâncias bem particulares.  

E, nessa perspectiva universal, o trabalho é entendido, sim, como mediação, com um fazer transistórico que se põe sobre o material natural para transformá-lo não apenas fisicamente (em sentido amplo), mas também significativamente, pois as “formas conceituais estão já contidas”, ou seja, presentes nesse mundo sobre o qual se volta o pensamento.

Eis o que diz o autor da Introdução à dialética que estamos estudando sobre a posição do trabalho concreto na história:

E não se pode abstrair esse momento do trabalho, isto é, não há propriamente uma natureza na qual, mesmo que de maneira meramente negativa não se possa detectar o rastro do trabalho humano. [10]

Mas como entender esse termo “mediação” tão importante tanto para a dialética idealista quanto para a dialética materialista? [11] Já em Hegel – ensina Adorno –, o mundo em que os seres humanos vivem é um mundo posto como tal pelo trabalho. Mas como entender “mediação” de um modo mais geral?

Para a dialética, o mundo é complexo no sentido de que as suas partes mantêm relações (e não meramente “interações”) constituídas por mediações que também são constituidoras. Por exemplo, em O capital, Marx fala da luz como mediação: “no ato de ver, a luz se projeta realmente a partir de uma coisa fora do olho para outra, o próprio olho” com o objetivo de explicar melhor a mediação “mercadoria” no capitalismo. [12] E esse exemplo, como já foi indicado, só pode ser um caso de algo absolutamente geral.

Tal como consta no texto citado, o “mundo [é] essencialmente mediado pelo trabalho humano”? E, trabalho humano – deve-se atentar – não é nunca apenas um “gasto de energia humana” aplicado sobre algo, pois se trata também – sempre, sempre – de uma atividade significativa. Na verdade, como acentua o Lukács da Ontologia social, o trabalho transforma o homem em um ser teleológico. [13]

Na dialética idealista e na dialética materialista – julga aquele que aqui escreve – não se pode separar abstratamente, mantendo essa separação, os três momentos da mediação complexa entre ser humano e mundo não humano humanizado: trabalho, linguagem e luta pelo reconhecimento.

Mediação, aquilo que [o autor da Fenomenologia do espírito] pretende dizer com aquela frase de que “não há nada sob o céu que não seja mediado”, significa que, já para Hegel, não há propriamente nada humano que, num sentido determinado, não esteja impregnado pelo momento do trabalho. [14]

Parece, pois, à primeira vista, que se pode falar, sim, no trabalho como base ontológica da sociedade já que o trabalho como mediação é transistórico. Ou não? Adorno, em seu texto que aqui se estuda, ensina que a dialética moderna está “na mais nítida oposição às ‘filosofias do ser’ bastante em voga hoje em dia” [15]. A referência final ao tempo em que escreve explica-se pelo fato de que está se referindo à filosofia de autores como Martin Heidegger e de outros por ele influenciados. De um modo peremptório, afirma então que a filosofia de Hegel não é um saber fundacional, ou seja, uma ontologia.

Eis que a dialética se recusa a pensar meramente o ser em abstrato como princípio primeiro, afirmando assim um referente que estaria em tudo que existe e que, por existir, encontra-se em movimento. Mesmo a opinião de que o ser é um vir a ser, um mover perpétuo que implica em continuidade e transformação, lhe parece insuficiente. Eis que ela quer apreender a mudança como processo, não de modo externo, mas penetrando na lógica interna do próprio processo concreto do ser em mudança.    

O que ambas as versões das filosofias dialéticas têm em comum não se refere somente à mera historicidade, ao fato de que se deveria permanecer na simples afirmação de que o ser ou a verdade tenha caráter histórico; mais do que isso, a dialética depreende daí a consequência de investigar esse caráter histórico em todas as determinações concretas dos objetos. [16]

Mas qual vem a ser precisamente a diferença que separa as filosofias dialéticas das filosofias tradicionais? Como se sabe, o modelo que rege estas últimas foi fixado já por Aristóteles em sua obra principal, denominada por ele como Filosofia Primeira, um escrito inesquecível que mais tarde passou a ser chamado de Metafísica. É justamente a prescrição de que a filosofia como tal deve sempre buscar as causas primeiras (ou princípios) de cada ente, que é recusada pelas duas dialéticas em consideração. Ao contrário, a sua norma – como acima foi dito – é se concentrar nas “determinações concretas dos objetos”. Eis como Adorno reforça esse ponto:

O pensar dialético se diferencia do tradicional por não se pôr à procura de um elemento absolutamente primordial. (…) Pois, a busca por um absolutamente primeiro é, no fundo, idêntica em significado ao pensamento da invariância da verdade. (…) Imagina-se que o elemento primeiro – tanto faz o sentido em que se entenda esse elemento, seja como o logicamente primordial ou como o temporalmente primeiro – é aquele, em todo o caso, que se mantém de alguma maneira inalterável e, em virtude disso, é a chave para tudo o que vier depois. [17]

É com base nessa consideração que Adorno critica o marxismo soviético como degenerado por ter transformado “as condições materiais da existência social” em um “absolutamente primeiro”. Deve ser notado neste ponto, que a filosofia tradicional pensa o ser como ser fixo, como aquilo que permanece nas coisas que mudam na aparência, enquanto a dialética pensa o ser como mutante – que é (ou está, no registro da posição) e não é (ou não está, no registro da pressuposição) e que isso faz toda diferença.

Ora, isso mostra que há, sim, uma convergência entre a crítica do marxismo tradicional feita por Postone e a crítica do Diamat que se encontra no livro em estudo de Adorno. Ambas rejeitam considerar o trabalho como princípio primeiro da sociabilidade humana em geral. Mas também parece haver uma divergência entre elas já que Postone não considera o trabalho como uma mediação transistórica entre o ser humano e o mundo já sempre humanizado.

Veja-se, então, como uma e outra estão presentes num trecho importante de sua obra magna – supostamente muito influenciada pela teoria crítica –, quando ele distingue o marxismo tradicional das concepções do próprio Marx. Primeiro, ele crítica assim a concepção metafísica de trabalho:

Se o “trabalho” é o ponto de vista de uma teoria crítica, o enfoque da crítica torna-se necessariamente o modo de distribuição e apropriação do trabalho e seus produtos. De um lado, as relações sociais que caracterizam o capitalismo são vistas como extrínsecas ao trabalho em si (…); de outro, o que é representado como a especificidade do trabalho no capitalismo é, na verdade, a especificidade da forma como ele é distribuído. [18]

Em sequência, ele critica a tese de que o trabalho possa ser considerado como mediação em geral, afirmando que ele só pode ser mediação no capitalismo.  

A teoria de Marx leva a um conceito muito diferente das relações básicas do capitalismo. O que ele analisa como sendo específico do trabalho no capitalismo é o que o marxismo tradicional atribui ao “trabalho” entendido de modo transistórico como uma atividade que medeia as interações dos seres humanos com a natureza. [19]

Há vários problemas nessa sequência de argumentos. Primeiro, parece que ela contém um erro lógico. É certo que o trabalho como fundamento primeiro vem a ser um conceito transistórico (o que, como foi visto, ofende a dialética rigorosa); entretanto, o inverso, como soe supor Postone, não se afigura necessariamente como verdadeiro: o trabalho como mediação é, sim, transistórico no interior da dialética de Hegel e Marx.

Assim como a mercadoria é dúplice, é dúplice o trabalho que produz mercadoria e, portanto, como tal, ele responde por uma mediação dupla no capitalismo: enquanto trabalho concreto medeia entre a natureza e a sociedade; enquanto trabalho abstrato, substância do valor e conteúdo do valor de troca, medeia as relações sociais tipicamente capitalistas: a relação de mercadoria e a relação a relação de capital, grosso modo. No primeiro caso, o trabalho como mediação é transistórico, no segundo, está historicamente situado.

 Mas por que a dialética suprime a fundação primeira no discurso científico e filosófico? Porque, como explica Ruy Fausto, só assim o discurso pode se manter como rigoroso, ou seja, só assim ele consegue atender o seu objetivo próprio, essencial e inerente de apreender o objeto, que, como se sabe, está em movimento, em processo e em devir.  

Fundado tal como recomenda a filosofia de Aristóteles a Descartes, “o discurso [rigoroso] se interverte no seu contrário”, ou seja, se transforma num discurso relapso, pois “é conduzido a se afastar do seu objeto” [20]. A dialética é, pois, o discurso que suspende ou suprime a fundação primeira porque quer apreender o objeto em sua concretude e no transcurso do tempo.

Se a dialética aparece com o discurso que suprime a fundação primeira, está supressão, inserida no quando do esquema totalizante, se apresenta como uma espécie de “suspensão” do ato de fundar à espera do transcurso do tempo. É necessário que esse tempo transcorra para que se possa proceder a fundação. [21]

Ou seja, aquilo que está pressuposto é, então, posto: ao fim e ao cabo, o trabalho se mostra como a atividade que constituiu a sociedade da sua pré-história até o advento (possível) da história. Nos modos de produção pré-capitalistas, o trabalho guiava-se pela necessidade do senhor, mas no capitalismo ele se tornou compulsivo.  Ora, esse ponto central permite refazer a comparação entre a dialética e os discursos do entendimento tanto na filosofia como na ciência:

“Com efeito, se se pensa que essa relação com o ‘tempo’ é igualmente a relação com o ‘mundo’, pode-se dizer: se os discursos do entendimento põem entre parênteses o mundo/tempo para proceder ao de fundar, a dialética põe entre parênteses o ato de fundar para se apropriar teórica e praticamente do mundo” [22]

Segundo esse autor, essa formulação acima apresentada exige duas precisões.

A primeira ressalta que fundação é fundação primeira e “não toda espécie de fundação: a dialética não é estranha a toda fundação” já que ela não prescinde do princípio do movimento que é, para ela, a contradição determinada (não a contradição em geral), não prescindindo também do princípio da relação entre as coisas que sempre se dá por certa mediação.

A segunda visa distinguir a dialética do historicismo que se atém à “temporalidade vivida da história”. A dialética é um discurso conceitual que visa apreender o cerne da complexidade de estruturas temporais, em processo de vir a ser.

A conclusão que se pode chegar nessa nota é que se Postone – havendo lido Adorno como indica em seu livro – critica corretamente o marxismo tradicional porque caiu num erro, com repercussões ideológicas complicadas, ao fundar o seu discurso numa ontologia (ou metafísica) do trabalho. Entretanto, ele não chega a ficar no lado da dialética marxiana porque não compreendeu bem a dialética como discurso e caiu em várias confusões.  

Em resumo: o trabalho não é a base ontológica da sociedade; mas vem a ser, no entanto, mediação constitutiva da sociedade como tal.


[1] Professor aposentado do Departamento de Economia da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br

Blog na internet: https://eleuterioprado.blog

[2] Postone, Moishe – Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo: Boitempo, 2014.

[3] Idem, p. 80.

[4] Não se está incluindo nessa categoria (pelo menos provisoriamente) a ontologia social de György Lukács já que ela apreende a apresentação dialética de Marx do capital e de seu sistema como um “espelhamento dialético da realidade objetiva”. Ver Lukács, G. – Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 27.

[5] Adorno, Theodor W. – Introdução à dialética. São Paulo: Editora da UNESP, 2022.

[6] Idem, p. 279.

[7] Idem, p. 241.

[8] Idem, p. 225.

[9] Postone, op. cit., p. 451.

[10] Adorno, op. cit., idem, p. 226.

[11] A dialética idealista admite que, em última compreensão, o sujeito e o objeto são idênticos; a dialética materialista confessa que, para ela, há uma diferença irredutível entre o sujeito e o objeto.

[12] Marx, K. – O capital. Crítica da Economia Política, Tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 71

[13] Devo essa lembrança, assim como outros pontos importantes, a Paulo Henrique Furtado de Araújo que se dispôs, gentilmente, a criticar uma primeira versão deste meu texto. Entretanto, como aprendi com o artigo de Semeraro, o pôr teleológico do trabalho já se encontra em Hegel. Ver Semeraro, Giovanni – A concepção de ‘trabalho’ na filosofia de Hegel e de Marx. Educação e Filosofia, vol. 27, nº 53, p. 87-104, jan./jun. de 2013.

[14] Adorno, Op. cit., p. 226.

[15] Idem, pag. 89.

[16] Idem, p. 90.

[17] Idem, p. 96-97.

[18] Postone, op. cit., p. 78.

[19] Idem, p. 79.

[20] Fausto, Ruy – Marx: Lógica e Política. Tomo I. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983, p. 34-35.

[21] Idem, p. 35.

[22] Idem, p. 35.